Entre o amor e a tradição

Terça feira da quinta semana do tempo comum. Fevereiro vai se desdobrando ainda no compasso da pandemia. O imprescindível como incógnita, se faz morada entre nós. Segundo dados dos epidemiologistas e infectologistas, de cada 10 pessoas que estão sendo internadas nas UTIs hospitalares, 8 delas não receberam nenhum tipo de vacina. É o mesmo que “pedir para morrer”, diante de um vírus traiçoeiro. O Brasil figura entre os três países do mundo inteiro com o maior índice de mortalidade, decorrente desta doença. O “novo normal” está muito distante de nós ainda.

Diante de um cenário aterrador, resta-nos revestir-nos de esperança. Esperança que brota do conceito freiriano do verbo esperançar. Esperar fazendo acontecer o esperançamento da utopia de nossa história, sujando as mãos e os pés na poeira da estrada. Apesar da noite escura de nossa história, há uma luz acesa no final do túnel, apontando para dias mais vindouros e benfazejos. Rezei a minha oração de agonia, lembrando de uma das frases escritas pelo nosso bispo Pedro: “A esperança brota da oração de agonia, ou da rebeldia solidária, ou da luta política, ou da organização popular. Só vivendo a noite escura dos pobres pode-se viver o Dia de Deus. As estrelas só são vistas à noite”.

Acordei nesta manhã e, ainda muito cedo, trazendo em meu pensamento a presença viva da cantora Nara Leão com a sua canção: “Faz Escuro Mas Eu Canto”. Logo na sua primeira estrofe ela assim se expressa: “Faz escuro, mas eu canto. Porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro. Vai ser tão lindo, a cor do mundo mudar”. Meu coração se esbaldou de contentamento. O esperançamento transfixou das minhas veias, me fazendo acreditar que podemos fazer o novo acontecer, mesmo nas circunstâncias mais adversas possíveis. A utopia do novo que se refaz em forma de oração e na sintonia com o Deus de Jesus. Meus ouvidos ainda lembram de Pedro nos dizendo: “Na minha idade, tudo cabe em uma oração”.

Por falar em oração, a liturgia de hoje nos faz entrar no capitulo 7 do Evangelho de Marcos. Jesus, desta vez, as voltas com os fariseus e mestres da Lei, que deixaram Jerusalém para confrontar o Mestre, alegando que os seguidores d’Ele não cumpriam fielmente aquilo que estava prescrito na Lei Judaica: “Alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado”. (Mc 7,2) Oportunidade que Jesus aproveita para desmascarar aquilo que está por detrás de certas prática tidas como religiosas. Práticas estas constituídas por um ritualismo doutrinal externo, que não vai no âmago das questões centrais de Deus, da fé e da pessoa humana.

Diante daquelas lideranças religiosas intransigentes, Jesus escolhe o exemplo do quarto mandamento, fazendo uso de uma terminologia que aparece uma única vez em todo o Novo Testamento (Mc 7,11): “Corbã”. Este mandamento, desvirtuado pelos fariseus e doutores da Lei diz respeito ao voto, pelo qual uma pessoa consagrava a Deus os próprios bens, tornando-os intocáveis e reservados ao “tesouro do Templo”. Corbã, portanto, é uma palavra hebraica que significa um presente ou oferenda consagrada a Deus, mas depositada no tesouro do templo. Jesus condena os fariseus por sua falsa doutrina, pois por suas tradições eles destruíram o mandamento que exige que os filhos honrem seu pai e sua mãe, transformando-o numa forma de engordar os seus cofres. Como diz um amigo meu: “Qualquer coincidência com os nossos templos atuais é mera semelhança”.

“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. (Mc 7,6) Uma frase muito forte dita pelo próprio Jesus naquele atual contexto e que chama a nossa atenção para os dias de hoje, com a nossa prática de fé. Será que não estamos fazendo o mesmo que os fariseus e doutores da Lei? Contentamos apenas em viver uma fé de aparências, estando mais preocupados com os ritualismos doutrinais esternos em nossas comunidades? Será que o nosso coração se aproxima dos anseios de Jesus e nos coloca em sintonia com uma “rebeldia solidária” com a prática da justiça do Reino? Nossas relações humanas são marcadas pelo amor incondicional às causas dos pequenos? Nossas atitudes de louvor a Deus são permeadas pelo reconhecimento dos crucificados da história? Ou será que estamos esvaziando a Palavra de Deus com as nossas tradições, nossos ritos sacramentalistas, nossas doutrinas dogmáticas, através de uma vivência da fé sem compromisso com os irmãos e irmãs que mais sofrem? Que saibamos traduzir toda a tradição da Lei nesta síntese feita por Jesus: “Ame a Deus sobre todas as coisas e a teu próximo como a si mesmo”. (Mt 22,37) É bom pensar nisso!


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.