São Romero de América

Quinta feira da terceira semana da quaresma. Entramos na última semana do mês de março. Os dias correm velozes. Quando menos esperamos, o dia se foi e o outro se faz presente. É preciso estar atentos para viver na intensidade do bem viver. Um dia de cada vez, na certeza de que não estamos sós neste mundo. Conosco caminham todos aqueles e aquelas que acreditam num novo esperançamento, e o Deus da vida que se faz presente nesta caminhada. Um caminhar desafiante mais ou menos como dizia o cantor e compositor Renato Russo: “Não sei onde estou indo, só sei que não estou perdido, aprendi a viver um dia de cada vez”. Talvez seja este o nosso desafio maior diante da nossa Pacha Mama.

Uma quinta feira que resolvi acordar o dia na companhia de nosso bispo Pedro. E não podia ser diferente. Em meio ainda a penumbra da noite, me fiz presente em seu túmulo, tendo por companhia um bando de papagaios falantes, que tomaram conta das arvores ali do cemitério; o barulho das águas do Araguaia ali do lado, com os “banzeiros” provocados pelo transitar das voadeiras (barcos) indígenas, indo e voltando das e para as aldeias, localizadas na Ilha do Bananal; e o sol rompendo as nuvens, prenunciando mais um dia para nós ribeirinhos deste rincão. O Criador acreditando mais uma vez no dom precioso da vida, nos proporcionando um existir pleno de luz e esplendor. Onipotente e bom Senhor.

24 de março. Neste dia celebramos o martírio de São Romero de América. Oscar Arnulfo Romero Galdámez (1917-1980), mais conhecido como Dom Oscar Romero, foi um sacerdote católico salvadorenho, quarto arcebispo metropolitano de San Salvador, capital de El Salvador, assassinado brutalmente, em 24 de março de 1980, quando celebrava a Eucaristia, por um atirador de elite do exército salvadorenho. Como expoente e interlocutor da Teologia da Libertação, o arcebispo de San Salvador, denunciava as violações contra os direitos humanos, da paz e dos mais pobres na América Latina e mais particularmente em seu país natal, pagando com a própria vida, pela sua atuação coerente e profética. Calaram a sua voz mas não calaram as suas causas.

Nosso bispo Pedro tinha um carinho especial por Dom Oscar Romero. Eram amigos de longa data. Comunicavam-se frequentemente, num tempo em que a escrita das cartas fazia às vezes das redes sociais. No dia de sua morte, Romero escrevera a Pedro, agradecendo pela solidariedade do bispo amigo/irmão do Araguaia, perante aquele momento de seu calvário. Mal sabia ele que, assim que Pedro recebesse aquela carta, já estaria presente na Páscoa do Ressuscitado. “Romero foi abandonado pela própria Igreja hierárquica, que lhe virou as costas”, confidencio-nos Pedro diante da morte do amigo. A Igreja profética de El Salvador irmanada à Igreja profecia viva do Araguaia, na pessoa de nosso franzino Casaldáliga.

O sangue do “Servo Sofredor” de San Salvador, misturado ao sangue Ressuscitado, transubstanciado na mudança da substância do pão e do vinho na substância do Corpo e Sangue de Jesus Cristo, no ato da consagração. O sangue martirial de Romero, misturando-se com o sangue do Cordeiro Imolado no altar do martírio, como Pedro expressou em um de seus poemas, dedicado ao amigo/irmão no episcopado: “Tu ofertavas o Pão, o Corpo Vivo – o triturado Corpo de teu Povo: Seu derramado Sangue vitoriosa – o sangue “campesino” de teu Povo em massacre que há de tingir em vinhos e alegria a aurora conjurada! Toda a Igreja latino-americana, comprometida com as mesmas causas de Jesus, choramos a morte de mais um corpo tombado pelas armas da morte do anti-Reino, confiantes na profecia anunciada por Santo Oscar Romero: “Se me matarem, ressuscitarei na vida do meu povo”. Dito e feito.

“Quando falta a profecia, o povo se corrompe! (Pr 29,18) Vivemos em tempos que a Igreja, uma parte dela, abandonou a profecia, uma das espinhas dorsais e razão de ser do cristianismo. Estamos cansados de uma Igreja que diz amém a todas as injustiças e atrocidades para com os pequenos e marginalizados. Uma Igreja midiática que serve aos interesses dos poderosos e de uma elite opulenta, que vive as custas da desigualdade social. Talvez para esta gente Jesus esteja também dizendo hoje: “Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, dispersa”. (Lc 11,23) Quem não age com Ele e como Ele, torna-se seu adversário, antagonista do Reino. “A hora do teu Povo te consagrou no ‘Kairós’. Os pobres te ensinaram a ler o Evangelho”. (Pedro Casaldáliga – 1980) Que os pobres sejam nossos mestres na arte de ensinar-nos a ler/viver o Evangelho e, consequentemente, ser/estar no mundo sem abandonar a profecia.

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.