No mês dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, refletiremos sobre a pureza do coração, a partir de alguns dados da Bíblia e também da tradição patrística. Diante da concepção do homem, da sua relação com Deus e do caminho a percorrer para alcançar a salvação, imediatamente surge a questão: qual é o coração que deve ser purificado?
Segundo a Bíblia, o coração recolhe em si a plenitude da vida espiritual, que deve abraçar o homem inteiro com todas as suas faculdades e atividades. O termo “coração, lev, levav, kardia designa, na Bíblia, muito mais que um simples órgão corporal; é usado, quase sempre, no seu sentido metafórico como a sede das diversas funções psicológicas do homem. Na concepção semítica, o “coração” designa dois aspectos complementares, um ligado à interioridade do homem (a parte do seu ser onde se situa a vida afetiva, intelectual, moral e religiosa) e outro ligado à sede da inteligência e da sabedoria. Diante de Deus, o homem sente-se chamado no mais profundo do seu “coração” (cf. Hb 4, 12), pelo que o mundo hebreu concebe o “coração” como a interioridade do homem, o lugar dos seus sentimentos, memórias e ideias, projetos e decisões. Na antropologia concreta e global da Bíblia, o coração do homem é a própria fonte da sua personalidade consciente, inteligente e livre, o centro das suas opções decisivas, da lei não escrita (cf. Rom. 2, 15) e da ação misteriosa de Deus. No Antigo Testamento, como no Novo Testamento, o coração é o lugar onde o homem encontra Deus, encontro que se torna plenamente ativo no coração humano do Filho de Deus.
O povo de Israel compreende que deve “amar a Deus com todo o seu coração” (Dt. 6, 5) vivendo de acordo com as prescrições da lei dada a Moisés. Mas isto não basta se Deus não vier em seu auxílio, renovando o “coração” humano perverso, dissimulado e sempre inclinado ao pecado (cf. Pr 26, 23-25). Diz ainda o Senhor ao seu Povo que lhe arrancará o “coração” de pedra e lhe dará um “coração” de carne, para que caminhe nos preceitos de Deus e cumpra as suas leis (cf. Ez 11, 19-20) pelo que deve ser constantemente vigiado (cf. Pr 4, 23). O homem tem necessidade de um coração novo, temente a Deus, e pronto a reverenciar o seu Criador, e só o pode possuir na medida em que está no poder de Deus conceder-lho (cf. Jr 32, 39-40).
Também a comunidade cristã primitiva compreende o “coração” como o lugar de onde brota o pecado. Do coração “procedem os maus pensamentos, as mortes, os adultérios, a prostituição, os furtos, os falsos testemunhos e as blasfêmias” (Mt 15, 19 s.). Mas a mensagem cristã vai mais longe que a compreensão do Antigo Testamento ao indicar que Deus oferece agora a salvação através do seu Filho Jesus Cristo, que é “manso e humilde de coração” (Mt 11, 29), que guarda os “corações” dos seus fiéis (cf. Fl 4, 7). Jesus chama de bem-aventurados todos aqueles que são “puros de coração”, prometendo-lhes a visão do próprio Deus (cf. Mt 5, 8)
O pensamento patrístico, neste caso, é fortemente influenciado pela filosofia grega. Platão vê o “coração” como a sede dos apetites sensitivos ou das paixões. O estoicismo, que também influenciará o pensamento dos Padres orientais, fazia do “coração” a sede do próprio intelecto e do pensamento. É a partir daqui que os Padres gregos de inspiração neoplatónica e estóica vão entender o “coração” como o lugar do nous. Gregório de Nazianzo, mestre de Evágrio Pôntico, chega mesmo a identificar o “coração” puro com o aspecto intelectual da alma (to. dianohtikon).
O “coração” é a parte espiritual do homem, representada como corpo interior e invisível, lugar dos sentimentos e das sensibilidades. É, por oposição ao corpo visível, a parte escondida do homem, que só Deus conhece, onde são visíveis os sinais que permitem um sério discernimento. Este é ainda o lugar misterioso da “essência da alma” e o centro e “raiz da vida”, através do qual os Padres vão dizer que Deus entra na vida do homem com todas as suas propriedades e riquezas. Neste sentido, já em Orígenes, que exerce uma grande influência sobre o monaquismo do Egito, o “coração” era visto como a sede dos sentimentos humanos e, por isso, é a parte escondida do homem que só Deus conhece e que permanece sempre um mistério.
Para os Padres gregos kardia, psiché, e nous designam realidades muito vizinhas, mas que não se confundem. Num sentido mais geral, kardia parece ser mais abrangente que psiché, e pode compreender, com aquilo que lhe é próprio, mais do que o princípio da via sensitiva; por seu lado, nous é, para estes Padres, o interior do coração. Em relação à ação de Deus, a alma é o conjunto das atividades interiores do homem, que se pode dispor à graça; o “coração” é o lugar onde a graça se torna visível quando a alma se dispõe em direção a Deus. Por isso, o “coração” é, por excelência, o lugar da vida espiritual e o lugar da contemplação, pois é no “coração” purificado que os cristãos podem “ver” a Deus. Assim, o amor a Deus é o amor afetivo que se tem com todo o “coração”, com toda a alma e com todo o pensamento. Se, na terminologia monástica, o “coração” é o lugar dos vícios e das paixões, é também o receptáculo das virtudes e da graça divina.
No âmbito ocidental, encontramos em Clemente Romano a noção de “coração” associada à visão das coisas celestes, por intermédio de Cristo: “Por seu intermédio (de Jesus Cristo) contemplamos as alturas dos céus, vemos como num espelho o seu imaculado e sublime rosto, são abertos os olhos do coração”. Cipriano de Cartago associa, por sua vez, o “coração” ao homem interior e à oração, dizendo que “Deus ouve o coração, não a voz”. Ainda na tradição cristã latina, Agostinho de Hipona usa sobretudo o termo cor no seu sentido metafórico (psicológico, filosófico-antropológico e teológico), fazendo-o acompanhar de constantes citações bíblicas. O “coração” é o homem todo, na sua interioridade e no seu dinamismo espiritual. Nas suas obras, expressões como ex corde suo e ex intimo suo vêm normalmente associadas, assim como cor e homo interior, cor e mens, cor e conscientia. O “coração” é visto como o princípio do pensar e do agir, que permite ao homem conhecer e discernir. Para este Padre da Igreja, o “coração” é, ainda, o lugar por excelência da ação Trinitária no homem: Deus habita no mais profundo do “coração” humano; este é iluminado por Cristo, que fala ao homem no íntimo do seu “coração” e o associa à sua Páscoa; é dilatado pelo amor de Deus, fruto da ação do Espírito santo. Nas suas Confissões, ao reconhecer a sua debilidade diz: “no meu coração, onde eu sou como sou” (Conf. XIII, X, 3,4). Deste modo atribui ao “coração” a raiz da vida moral: “tudo aquilo de que falo é como uma árvore, tem as suas raízes no coração, porque as ações realizadas procedem da raiz do coração; se aí plantares a paixão brotarão espinhos; se aí plantares a caridade, brotarão flores e frutos”. A espiritualidade do “coração” é uma característica de Agostinho, que vê neste órgão o lugar onde Deus coloca a sua morada, sede de encontro entre o livre arbítrio do homem e a graça de Deus. A expressão oculus cordis torna-se a faculdade epistemológica que permite ao homem superar a realidade sensível e ascender à visão das coisas celestes. O “olhar do coração”, tornando-se puro, é capaz de ver Deus que habita no mais profundo de si mesmo: “Quem conhece Deus com o olhar do coração? Se o olhar é puro, é suficiente para alcança-lo. Por outro lado, se o alcança, é por um contato imaterial e espiritual, contudo não o compreende; e isto se está purificado. E o homem torna-se beato no contato do coração com quem sempre permanece beato e é em si mesmo bem-aventurança perpétua”.
Por fim, o Bispo de Hipona associa o termo “coração” à misericórdia, encontro do homem convertido com Deus e encontro do homem com os seus semelhantes. O “coração”, unido à misericórdia e à amizade constitui, assim, um trinômio pertencente “a uma mesma família semântica cujos termos assumirão, com Agostinho, uma modulação antropológico-espiritual de carácter sapiencial densa de mistério: “or” designa o homem “misericórdia” e “amigo”, capaz de comunicação com as pessoas, começando por Deus.