A sociedade que temos e a que queremos

Quarta feira da décima oitava semana do tempo comum. Agosto vai nos introduzindo nos dias mais difíceis aqui pelas bandas do Araguaia. As cinzas das queimadas se espalham diuturnamente sobre as nossas mesas. Os raios do sol não conseguem ultrapassar a camada de fumaça que fica espalhada no ar. Em consequência disto, tome mormaço. Nesta situação, centenas de passarinhos aproveitam para banharem-se nos esguichos que uso para molhar as plantas do meu quintal. Também as águas do Araguaia vão diminuindo, deixando às escancaras as suas belas praias. Este é o retrato dos dias atuais neste paraíso que moramos e que poderia ser bem diferente.

Dia 3 de agosto. Nesta data comemoramos o fim oficial da censura no Brasil. Data esta que foi criada no ano de 1988, recordando-nos do dia em que foi votada pela Assembleia Nacional Constituinte, a nossa Constituição Federal “Cidadã”. Nunca é demais lembrar que a censura surgiu a partir da Ditadura Militar de 1964, quando a liberdade de expressão foi cerceada, assim como qualquer forma de expressão intelectual, artística, cientifica e, principalmente política. Uma verdadeira caça às bruxas, com assassinatos, prisões, torturas, perseguição e também desaparecimentos dos opositores ao regime de exceção. Ditadura nunca mais! Tortura nunca mais! Censura nunca mais!

Diante deste contexto ficamos nos perguntando: que sociedade queremos mesmo construir? Da que temos para a que queremos. A que aí está não nos serve. Como partícipes da cidadania, olhamos para o futuro e arregaçamos as mangas para construir a sociedade que queremos no hoje da nossa história. Uma sociedade mais igual, fraterna, onde a desigualdade dê lugar a oportunidade de igualdade para todos. Uma sociedade solidária, irmanada na partilha dos bens, serviços e bem estar para todos os filhos e filhas desta sociedade. A igualdade deve estar nas relações e nas ações cotidianas, não apenas na letra morta da lei do, “Todos são iguais perante a Lei” (Art. 5º da CF/1988). Na sociedade que aí está, enquanto muitos têm pouco; poucos têm muito.

Como filhos e filhas da resistência, temos a responsabilidade de lutar por outra realidade possível. Ocupar os espaços e fazer acontecer a sociedade que queremos, quiçá, inspirados pelo espírito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST), “ocupar, resistir, produzir”. Nas contradições da vida vamos somando esforços em meio à diversidade de pensamentos e ações. Resistir sem jamais desistir dos nossos propósitos na construção desta outra realidade possível. Resistir, insistir, persistir, pois esta outra realidade virá como fruto de nossas lutas e conquistas e não como obra e favores daqueles que nos dominam e exploram. A nova sociedade será constituída pelas novas ideias e sonhos que sonhamos juntos. Sociedade nova, ideias e atitudes novas como nos sugere Paulo Freire: “qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto da alegria, gosto da vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça”.

Não desistir dos nossos sonhos e das nossas convicções, este é o lema que deve permear todas as nossas ações e pensamentos. Como a mulher cananeia do evangelho de Mateus, proposto pela liturgia para o dia de hoje. Apesar de saber da sua condição pagã e trazer em si todo o estigma de uma sociedade que excluía e marginalizava tais pessoas, ela não desiste de ter um encontro pessoal com Jesus. Neste encontro dela com o Nazareno, ela o convence de que também faz parte do projeto salvador de Deus: “É verdade, Senhor; mas os cachorrinhos também comem as migalhas que caem da mesa de seus donos!” (Mt 15, 27) Ela provoca uma verdadeira “conversão” de Jesus: “Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como tu queres!” (Mt 15, 28)

Uma nova sociedade, um novo mundo é o grande sonho de Deus para o seu povo. Realidade esta que não brotará como num passe de mágica, mas que será estruturada pelas nossas ações concretas. Na relação de Jesus com a mulher cananeia pagã, fica evidente que o projeto salvador de Deus não é privilégio de um povo determinado, mas para todos aqueles e aquelas que acreditam n’Ele e na sua missão, mesmo que sejam considerados como cães, isto é, estrangeiros. Não é mais a raça e o sangue que unem as pessoas a Deus, mas a fé em Jesus de Nazaré e no mundo novo e transformado que Ele quer despertar em nós. A nova sociedade será fundamentada na justiça, na igualdade e no amor. Uma sociedade justa e fraterna. No dizer do filósofo Aristóteles, “A base da sociedade é a justiça; o julgamento constitui a ordem da sociedade: ora o julgamento é a aplicação da justiça”. Sonhemos juntos esta nova sociedade.


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.