A geopolítica da fome

Sábado da vigésima segunda semana do tempo comum. Entramos no primeiro final de semana de setembro, que vai aos poucos dando o ar da graça. Um sábado especial para a História da Igreja. Neste dia celebramos a vida de um grande personagem de nossa caminhada cristã: São Gregório Magno (540-604). Bispo e Doutor da Igreja, cidadão Romano que era, Gregório prestou relevantes serviços à Igreja, reformulando as estruturas hierárquicas. Apesar de ser um homem simples, seus escritos são fundamentais para o contexto de sua época. É dele a criação da expressão “Servus servorum Dei” (“Servo dos servos de Deus”), atribuindo a si, e que se tornou um apelativo que os demais Pontífices mantiveram ao longo da história.

“O caminho é estreito e difícil para aquele que caminha por ele triste e com pena de si; porém é largo e fácil para aquele que caminha com amor”. Seguindo nesta mesma toada de São Gregório Magno, a vida se faz no constante caminhar. Caminho que a gente é; caminho que a gente faz. Tanto que as primeiras comunidades cristãs foram identificadas como “a Igreja do Caminho”. Pessoas que, na peregrinação com Jesus, percorriam o caminho do Reino. Assim, o jeito de ser Igreja das primeiras comunidades, deve inspirar a nossa caminhada hoje e nosso compromisso com uma sociedade mais justa e fraterna, fundamentada no bem comum. Igreja povo de Deus em marcha, no passo a passo com Jesus.

Ser Igreja na mesma perspectiva das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). O mundo tem fome e sede de Deus. De algum modo, sentimos também fome e sede de justiça. Não apenas da justiça dos tribunais, mas da justiça de Deus. Ser Igreja neste contexto é fazer do testemunho a Palavra vivida. Anunciar a Palavra com a própria vida e não a partir do púlpito das igrejas. Ser e testemunhar a Igreja que vai aonde o povo sofrido está. Igreja do caminho com Jesus de Nazaré. Ele fez a experiência primeira de uma Igreja em saída: se afastou da religião do Templo para anunciar a Boa Nova do Reino a partir da periferia da Galileia dos pagãos.

Ser Igreja em meio a uma realidade de fome de pão, de voz e de vez. Nosso povo passa fome. Fome biológica do estomago corroído pela dor do vazio. Fome de não ter o que comer e nem quando o terá para comer. Fazemos parte da geopolítica da fome. Um termo sofisticado para designar que o mapa da fome voltou a fustigar a nossa gente. Geopolítica é o termo que surgiu a partir da obra do cientista político sueco Rudolf Kjellén (1864-1922), no início do século XX. Tudo no intuito de entender as relações de políticas e de poder entre os Estados pelas vias diplomáticas. Vias diplomáticas estas que não são capazes de erradicar a fome no seio das famílias, como acertadamente nos disse Josué de Castro: “Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come” – CASTRO, Josué de. Geografia da fome. p.22. Rio de Janeiro: Antares, 1980.

Fome que faz parte da geografia brasileira: 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil. Se somos uma população de 212,6 milhões de pessoas, pelo menos 33% desta está em situação de carência alimentar. Fome que é a temática que refletimos hoje em nossas celebrações. Ser Igreja com Jesus, conforme nos ensina a proposta litúrgica deste sábado, em que estamos diante mais uma vez da narrativa Lucana. Nela, os seguidores de Jesus estavam tão famintos, que foram levados a corromper a “Lei do sábado”, para desespero dos fariseus. Fariseus que olhavam para a Lei e a tinha como algo acima de tudo, inclusive da vida humana e de suas necessidades vitais. Algo muito parecido com a retórica que estamos vendo acontecer nos nossos dias: “Deus acima de tudo” e a vida humana que se lasque.

Jesus é o Senhor do sábado: “O Filho do Homem é senhor também do sábado”. (Lc 5,5) Sendo Ele o Senhor do sábado, está acima de qualquer lei, mesmo as leis religiosas, elaboradas pelos homens. Com a sua atitude diante dos fariseus, Jesus relativiza todas as leis, mostrando que elas não têm sentido quando impedem as pessoas de terem acesso aos bens necessários para a própria sobrevivência. A vida prevalece sobre a lei, uma vez que ela está acima de tudo. Vida que te quero vida e vida plenamente (Jo 10,10). Ser a Igreja do caminho da vida. Igreja mais da solidariedade que da caridade afinal, como bem disse Eduardo Galeano: “Diferentemente da solidariedade, que é horizontal e praticada de igual para igual, a caridade é praticada de cima para baixo, humilha quem a recebe e jamais altera um milímetro as relações de poder”. Saiamos da geopolítica da fome e passemos para a geografia plena da vida humana: “Tive fome e me destes de comer”. (Mt 25,35)

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.