Conversão: tornar o Reino de Deus visível em nós – “o Verbo se fez gente”

Liturgia da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Rei do Universo, Ano C – 20/11/2022

Na Liturgia deste Domingo, Festa de Cristo Rei do Universo, XXXIV do Tempo Comum, veremos, na 1a Leitura (2Sm 5, 1-3) que David é ungido rei de Israel para construir uma nação unida e promotora da paz e da justiça. O texto deixa claras as condições para ser ungido, isto é, qual é o perfil do governante: 1) Davi foi líder dos descontentes, com a má administração de Saul, então, junto com o povo, assume as lutas por mais liberdade e justiça. 2) David não manipula, não domina, mas conduz o povo para que, não alienado, assuma o papel de protagonista da nova história. O Rei deve ser forte para proteger o direito dos fracos e marginalizados. 3) David convive com as lideranças populares, respeitando-as e partilhando o poder, seria, assim, uma espécie de administração participativa. 4) O governante deve ser segundo o coração de Deus: humilde. David preenche essas condições e tem consciência de suas fraquezas, “o pecado está sempre à minha frente”; recorre muitas vezes a Deus: “Tem piedade… apaga a minha culpa… lava-me… purifica-me… eis que nasci no pecado… Ó Deus cria em mim, um coração puro, renova-me… não retire de mim teu Santo Espírito”.

Na 2ª Leitura (Cl 1, 12-20), o apóstolo Paulo nos convida a dar glória ao Pai que nos deu seu Filho, Jesus Cristo, como nosso rei. Por sua encarnação, morte e ressurreição, Cristo nos arranca do poder do mal e nos chama para seu reino. Paulo cita um hino cristão para criticar qualquer doutrina que apresente como necessárias outras mediações salvíficas, além da de Cristo. Cristo é o único mediador entre Deus e a criação, e só ele, mediante a cruz, é capaz de reconciliar Deus com as criaturas submetidas ao pecado.

No Evangelho (Lc 23, 35-43), Jesus confirma sua realeza, isto é, seu projeto de governo que tem como prioridade a vida e a dignidade para todos. Frente à situação histórica atual, cabe a cada um de nós construir o reino, é nossa responsabilidade. Hoje, vivemos sob uma ameaça constante de catástrofes e do perigo da destruição do planeta. São mais de dois bilhões de pessoas, dois terços delas vivem em condições sub-humanas, não tendo o mínimo necessário para sobreviver. Vemos o aborto, a desnutrição, armas químicas, repressão policial, violência, assassinatos, tortura, governos corruptos, lágrimas, dor, morte, silêncio e conivência da grande maioria. Diante dessa realidade, Jesus nos adverte: “O meu reino não é deste mundo piramidal, desigual, de exclusão e marginalização. O meu reino é de fraternidade, solidariedade, de amor e paz”.

Esta realidade demostra o reino de satanás, é a imagem do inferno na terra. Opressão do demônio: “Conseguia que todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, imprimissem na mão direita ou na fronte uma imagem da besta” (Ap 13,16-17). Isto tudo é oposição ao Reino de Deus: “Esta é a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles. Eles serão o seu povo e ele, o Deus-com-eles será o seu Deus. Ele vai enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Sim! As coisas antigas desapareceram!” (Ap 21,3-4).

Num contexto não muito diferente, aparece Jesus. Ele viveu em uma época em que parecia que o mundo estava prestes a chegar ao fim. Mas Jesus viu uma saída e, na verdade, mais que uma saída. Ele viu o caminho para a libertação e a realização total da humanidade. Viu, na humanidade recuperada, o seu tesouro (Lc 12,34 e Mt 13,44).

Os preferidos de Jesus

Jesus começou sua missão batizando o povo (Jo 3,22-26), logo, abandonou essa prática (Jo 4,1-3). Foi, então, procurar, ajudar e servir

as ovelhas perdidas da casa de Israel. Ele se fez Pastor de uma multidão que estava abandonada e marginalizada (Mt 9,35-38).

Quem eram os abandonados e perdidos? Os pobres, os doentes, os pecadores. Esses eram terrivelmente humilhados, sem honra, sem prestígio, analfabetos, não instruídos, imorais e sem lei. Eram chamados pelos doutores da lei e outros de ‘povinho’, ‘ralé’ (Jo 7,49). Eram desprezados e considerados vagabundos, subversivos, terroristas etc.

O Reino de Deus

O maior milagre que Deus nos faz é nos dar capacidade para mudar a nossa própria história, isto é, a conversão (Lc 15, 17-18), chegada do Reino visível (Mc l, l4-l5). “O Reino está no meio de vós” (Lc 17,21), percebível. Mas que não se esgota na história e se concretizará na vida eterna: “Venha a nós o vosso Reino” (Lc 11,2).

Do ponto de vista de Jesus, satanás governa o mundo. Era uma geração perversa e pecadora (Mc 8,38). Isso era evidente não apenas nos sofrimentos dos pobres e dos oprimidos, mas também na hipocrisia, na dureza de coração e na cegueira dos dirigentes religiosos, na falta de misericórdia e na opressão das classes dominantes. Satanás é espírito que governa indireta e invisivelmente: César, Herodes, Caifás, Chefes dos Sacerdotes, Escribas etc. “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36).

O Reino de Jesus não se mantém com exércitos, armas e violência. Seu trono transparece no ‘presépio’ (humildade) e na cruz (sacrifício). Os tributos cobrados são a fé e o amor.

O Reino dos pobres

“É tão impossível para um homem rico entrar no reino, quanto para um camelo (corda de pescador) passar pelo buraco de uma agulha” (Mc 10,25). Os discípulos se espantavam: “Então quem pode ser salvo? Aos homens é impossível, mas não a Deus, pois para Deus tudo é possível” (Mc 10,26-27). Será que o rico se salva? 1º) É preciso um milagre para fazer com que um homem rico entre no Reino de Deus. 2º) O milagre não seria fazer com que ele entrasse com todas as suas riquezas. O milagre seria conseguir que ele renunciasse a toda sua fortuna, de modo a poder entrar no reino dos pobres.

O Evangelho deixa claro que o bom rico não consegue dar o primeiro passo: o jovem rico nem nome tinha (Mc 10,17-22). O que dizer dos outros ricos? Em Lucas 19, o rico é excluído por não partilhar com Lázaro. Na visão de Jesus, nem um milagre salva um rico (ressuscitar um morto para avisar aos irmãos).

Seguir Jesus é deixar tudo. Jesus previne sobre a necessidade de, primeiro, sentar-se e avaliar quanto isto lhe custaria (Lc 14,28-33). Quando Jesus viu a multidão com fome, disse-lhes: “Dai-lhes vós mesmo de comer” (Mt, 14,16). Partilharam e ainda sobrou (Mt 14,20). Mas, quando explicou a missão, muitos deixaram de segui-lo (Jo 6,66).

Zaqueu foi um rico convertido: devolveu quatro vezes (Lc 19,8). No juízo final, Jesus terá pena do rico que foi ignorante, mas não terá pena do religioso, do agente de pastoral que não ajudou o rico a devolver, partilhar.

O Reino e o prestígio

A crítica contra os escribas não era contra os ensinamentos, mas quanto à prática.

O reino é dos pequenos: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelastes aos pequ

eninos” (Mt 11,25). Jesus se misturava com os que ocupavam os últimos lugares, sentia o ‘cheiro’ das ovelhas.

O Reino e a solidariedade

Jesus superou a solidariedade grupal, partiu para a solidariedade humana universal. “Meu pai, minha mãe, meus irmãos são aqueles que fazem a vontade do pai” (Mc 3,31-35). Jesus ficou admirado com a fé da cananeia (Mt 15, 21-28) e do soldado romano (Mt 8,5-13).

O Reino e o poder

O reino é serviço espontâneo e fraterno. Jesus crítica Herodes (raposa) e o poder romano (aves – águia) (Mt 8,19-20 ou Lc 13,31-32). Crítica os líderes do povo: ‘sepulcros caiados’ (Mt 23,13-32). Jesus morre pelo Reino. “Ele, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1b).

A Popularidade de Jesus

Jesus era aceito pelas massas e isso preocupava as autoridades, causando inveja e má vontade. Para as autoridades, Jesus pregava a subversão e tinha pretensões políticas.

As críticas de Jesus atingem os influentes, tais como Herodes, os fariseus, os que exercem o poder geral, os ricos. Apavorados, dizem: “Se o deixarmos assim, todos crerão nele. Virão os romanos, destruirão nosso lugar santo e a nossa nação” (Jo 11,48).

Havia algumas palavras de Jesus ditas num contexto de urgência de conversão frente à iminência do Reino que, lidas com outra ótica, poderiam causar mal-entendidos políticos: “Não vim trazer a paz, mas sim a espada” (Mt 10,34); “Vim trazer a ruptura” (Lc 12,51). Mas, evidentemente, Cristo não quis violência. Manda que amemos os inimigos (Mt 5,44-48). Não aprova a espada: “Põe a tua espada na bainha, Pedro, porque todos aqueles que tomam a espada perecerão por ela” (Mt 26,52 e Lc 22, 35-38).

Jesus, alguém que desconcerta

Jesus não foi ordenado rabino, sobrepõe-se à lei, tolerava gente que era ‘mal vista’, lutava contra formalismos sem sentido (Mc 12,38-40). Esses motivos religiosos dogmáticos desestruturavam os fariseus. Todos perguntavam: Quem é ele? Donde lhe vem semelhante poder?

Jesus, alguém que provoca uma crise radical

Jesus faz coisas que só cabe a Deus (Ex: perdoava). A sua atuação produz uma crise nos ouvintes: decisão x julgamento, luz x trevas (Jo 3, 19-20), vida x morte, salvação x perdição (Jo 5, 24: 8,39). Por três vezes, diz o evangelho de São João, Cristo, por suas atitudes e palavras, provocou cisma no povo (Jo 7,43; 9,16; 10,19), isto é, produziu uma crise que o levou a uma ruptura/decisão pró ou contra Ele. Cristo é a crise do mundo, ou se transcende e, assim, se salva, ou se fecha sobre si mesmo, liquida Jesus de seu meio e se perde. Fanatismo religioso, vontade de poder e de manter privilégios assegurados foram, segundo os Evangelhos, os motivos principais que levaram os inimigos divididos entre si, mas unidos contra Cristo (Lc 23,12-13), a liquidarem o incômodo profeta de Nazaré.

De todos os modos vão contra Jesus

Jesus era um perigo para a ordem estabelecida, então, primeiro, exigem dele um atestado oral de boa conduta (Mc 2, l6.l8.24; 7,5; 11,27), pedem que siga a tradição; depois, procuram isolá-lo

do povo e, mesmo, atiçar este contra Ele. Os milagres que opera são difamados como obra do demônio:

– Perguntas capciosas para pô-lo em apuros ou fazê-lo ridículo frente a algum grupo (Mt 12,18-23);

– Questões controversas para obrigá-lo a tomar partido (Mc 10,2);

– Perguntas cuja resposta ou o faz inimigo do povo ou das forças de ocupação (Mc 12,13-17, Lc 11,53-54, Jo 8,5-6);

– É expulso da sinagoga, o que, na época, significava excomunhão;

– Tentativas de prisão (Mc, 11,18);

– Duas tentativas de apedrejamento (Jo 8,59; 10,31);

– Por fim, pensam em liquidá-lo (Mc 3,6, Jo 5, 18);

– Sua popularidade é impedimento grave (Jo 7,46).

Ao se ver cercado, Jesus começa a fugir para se defender, se esconde, some no meio da multidão, vai para Jerusalém, além do lago de Genesaré. Ao saber da decisão do sinédrio de matá-lo (Jo 11,49-50,53), busca, com seus discípulos, a cidade de Efraim, perto do deserto (Jo 11,54). Passa as noites fora da cidade, em Betânia ou no monte das Oliveiras (Mc 11, 11.19, Jo 18,12). As autoridades não sabem exatamente seu paradeiro. Publica-se uma proclamação ao povo, na qual se solicita indicar o paradeiro de Jesus para facilitar sua prisão (Jo ll,57). Judas traiu Jesus: indicou às autoridades onde estava Jesus e onde pudesse ser preso sem provocar sensação e tumulto popular.

Mensagem vida e morte: unidade radical

Jesus sabe como todos os profetas foram violentamente mortos (Lc 11,47-51; 13,34; Mc 12,2s). Sabe também do fim trágico do último e do maior de todos os profetas, João Batista (Mc 14,12-13).

Jesus, em nome de Deus, anuncia a libertação total, foi considerado pelo sistema como blasfemo (Mc 2,7), louco e fora de si (Mc 3,24), impostor (Mt 27,63), possesso (Mc 3,22) e herege (Jo 8,48). A religião pode libertar o homem, quando verdadeira, mas pode escravizá-lo ainda mais, quando ‘abusada’.

A fé e a esperança de Jesus

A fé foi o modo de existir de Jesus, deixando-se determinar sempre a partir de Deus e do Outro e não simplesmente a partir das normas religiosas e das convenções sociais da época.

Sua fé e esperança foram especialmente tentadas quando percebeu, mais e mais, a oposição acirrada que sua mensagem e pessoa encontravam nas várias camadas sociais de então. Jesus se deu conta de que a morte violenta estava dentro das possibilidades reais de sua vida (Lc 9,51). Diz que: “Ele endureceu o rosto, isto é, tomou resolutamente a decisão de ir para Jerusalém: Vai à frente, causando medo aos discípulos” (Mc 10,32), para lá anunciar e esperar o Reino de Deus. Ele não arreda o pé: “Minha alma está numa tristeza de morte” (Mc 14,34). Crê em sua missão libertadora e espera contra toda esperança.

Os apóstolos, ao saberem que iriam matar Jesus, disseram: “Não Senhor!” e Jesus exclamou: “Vamos a Jerusalém!” Por quê? Porque Jesus vê que todos os caminhos lhe são fechados; a única solução é trair o que está fazendo ou morrer. “Vamos a Jerusalém!”

Ressurreição, vitória do bem e esperança de todos nós

“Vocês serão as minhas testemunhas…” (At 1,8). Temos que entender a morte de Jesus dentro do contexto de sua mensagem sobre a vinda do Reino de Deus. O Reino de Deus é a concretização

da salvação. O Reino de Deus se realiza em Jesus de modo pessoal na forma de serviço. Curava as alienações dos homens desde sua raiz mais profunda. “Ele andou por toda parte fazendo o bem…” (At 10,26).

Enfim, como os discípulos, podemos questionar: Quando vai se estabelecer o Reino de Deus? A resposta vem da Palavra de Deus: “Quando Cristo, vossa vida, aparecer, então também vós aparecereis com Ele na glória” (Cl 3 1ss). Reinar é servir. “Eu vim para servir”. Quando todos os seres humanos estiverem plenos de vida, então, será a glória de Deus. O Reino vai ser pleno quando “Cristo for tudo em todos” (Cl 3, 11).

Boa reflexão e que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus.

 


Padre Leomar Antonio Montagna é presbítero da Arquidiocese de Maringá, Paraná. Doutorando em Teologia e mestrado em Filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Câmpus de Curitiba. Foi professor de Teologia na Faculdade Missioneira do Paraná – FAMIPAR – Cascavel, do Curso de Filosofia da PUCPR – Câmpus Maringá. Atualmente é Pároco da Paróquia Nossa Senhora das Graças em Sarandi PR.