Nossa porção mulher

Quarta feira da Segunda Semana da Quaresma. Assim como o povo de Israel vamos nós aqui também fazendo a nossa caminhada. Se lá, eles caminharam 40 anos pelo deserto adentro, fugindo da escravidão, rumo à Terra Prometida, aqui estamos dentro dos quarenta dias que nos transportarão à feliz data da Páscoa do Senhor. Todavia, só faz sentido se caminharmos tendo como horizonte a vida plena, preparando-nos um dia de cada vez pelo processo de conversão necessária para alcançarmos tal objetivo. Converter para viver a vida nova n’Ele.

Apesar de o tempo ser quaresmal de jejum, oração e penitência, é tempo também de comemoração. No dia de hoje celebramos o Dia Internacional das Mulheres. Um dia só para elas que já têm todos os demais dias como seus. Dia da mulher é todo dia e o dia que ela quer ter para si! Aí de nós se não fossem elas nas nossas vidas! Um dia para ser lembrado com todas as honrarias, afinal hoje é o dia daquela que é metade da humanidade e mãe da outra metade. É mole ou quer mais?

Mas nem tudo são flores na vida de toda mulher. Segundo as estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, dos mais de 822 mil casos de estupro de mulheres por ano, apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde. Dados que são alarmantes, sobretudo porque a cada minuto, duas mulheres são estupradas no Brasil, sendo que a maioria destes, em suas próprias casas. Como diz Milton Nascimento em sua canção: “Mas é preciso ter força, É preciso ter raça. É preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria, Maria, Mistura a dor e a alegria”.

Ser mulher no Brasil não é ser apenas pertencente ao gênero feminino. Ser mulher é ser desafio a cada instante para se afirmar como ser feminino na luta por seus direitos básicos de cidadania. Ser mulher é ser valente e ter coragem para lutar e enfrentar um mundo cuja supremacia masculina machista patriarcal quer a todo custo prevalecer. Como se não bastasse, elas ainda tem que conviver com o espírito misógino que se caracteriza pela repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres. Uma forma de aversão à mulher centrada numa visão sexista, que coloca a mulher em uma posição de inferioridade ao ser masculino. Tal situação é exemplificada quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que, globalmente, as mulheres ganham salários 20% menores em média do que os homens.

Diferentemente do que pensou e agiu Jesus frente às mulheres. Ele sabia que elas eram também consideradas seres inferiores naquela cultura e sociedade judaica de sua época. Em função disso, ele as trouxe para o centro e devolveu-lhes sua dignidade de filhas de Deus. O exemplo clássico desta atitude do Galileu é a mulher surpreendida em adultério, trazida pelos fariseus até Jesus (Jo 8, 3-11). A Lei vigente dizia que aquela mulher deveria ser apedrejada até a morte. Jesus mostra que qualquer pessoa, sobretudo aquela mulher, está acima de qualquer lei. Jesus subverte a ordem daquela sociedade machista ao extremo, que traz a mulher adúltera, mas não o homem adúltero que com ela estava.

Jesus acolhia, valorizava e respeitava as mulheres. Tal atitude do Mestre me fez me lembrar de uma experiência vivida por um padre amigo meu. Nas comunidades que celebrava tinha ele o costume de preparar as equipes de liturgia para que envolvessem as pessoas na celebração. Assim, foi escolhida uma linda moça para fazer uma das leituras. Ao perceberem que aquela moça era uma “garota de programa”, na sacristia a equipe decidiu passar tal tarefa para um jovem, comunicando-a da decisão. Ao término da celebração, meu amigo foi surpreendido na porta da igreja por aquela mulher que simplesmente lhe disse: “padre, não me deixaram fazer a segunda leitura, mas eu só queira te dizer que quem fez no meu lugar foi um cliente meu”.

Ser mulher é ser sinônimo de luta. Ser mulher é ser vida na vida de Deus. Ser mulher é ser espaço de acolhida da vida gestada. Ser mulher é ser colaboradora direta na obra do Pai/Criador, já que a semente semeada em seu ventre desabrocha em vida. Cada um de nós traz dentro de si a sua porção feminina, afinal todos nós estamos aqui neste mundo, graças a um útero materno que nos acolheu em amorosidade transformada em cuidado. Como diria o cantor/compositor Zé Ramalho: “Ninguém tem o mapa da alma da mulher”. Só Deus! Todo dia é dia delas. Todo dia é dia de lembrar, acolher, cuidar e rezar com elas, aproveitando desta oração que nosso bispo Pedro nos trouxe: “Deus da Vida e do Amor, Pai-Mãe da família humana, que quisestes que vosso Filho nascesse de uma mulher e que fizesse das mulheres companheiras da sua Caminhada e testemunhas primeiras da sua Ressurreição: Ensinai a humanidade inteira a superar toda discriminação, a conviver em igualdade de direitos e em harmonia de complementação, mulheres e homens, sendo filhas e filhos vossos, sendo irmãs e irmãos de uma família só. Por vosso Filho, Jesus Cristo, Filho de Maria de Nazaré, nosso irmão, o Libertador. Amém, Axé, Awire, Aleluia!


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.