A hermenêutica da Lei

Segunda feira da Quinta Semana da Quaresma. Seguimos no nosso retiro espiritual na busca pela nossa necessária conversão. Momento especial para deixar que o amor e a misericórdia de Deus nos abracem e assim possamos transformar a nossa convivência em relações de amorosidade, ternura, compaixão e, sobretudo, perdão. Tarefa não muito fácil, principalmente porque nos deixamos levar pelos interesses mesquinhos individualistas que marcam o nosso ser cotidiano, apesar da fé que juramos ter. Pela fé, busquemos o possível, tendo em nós a ideia de Charles Chaplin (1889-1977) que dizia: “Penso que a fé é a extensão do espírito. É a chave que abre a porta do impossível”.

Não basta ter fé. Não basta dizer que se tem fé. Toda fé precisa ser alimentada pela oração, pelo conhecimento da Palavra, pelo comprometimento com a vida e pela adesão ao Projeto de Deus revelado por Jesus. Também não nos basta ler cotidianamente a Palavra de Deus. Ela precisa ser conhecida para que assim possamos fazer o discernimento de como colocá-la em prática. Uma boa hermenêutica da Palavra já é um bom caminho andado em direção àquilo que ela quer nos ensinar. Interpretar para viver na intensidade de que é necessária.

A terminologia “hermenêutica” é de origem grega “hermeneutike”, cujo significado é “a arte de saber interpretar”. Podemos dizer que a hermenêutica é uma filosofia, ou melhor, uma ciência enquanto se propõe como técnica de interpretação. Ao fazermos uso dela, vamos mais a fundo na função de buscar o verdadeiro sentido de um determinado texto, a partir do momento em que fora escrito, dentro do contexto de época. No contexto bíblico, a hermenêutica nos ajuda a compreender o texto dentro de seu próprio contexto, para não desvirtuar a intenção do autor ao escrever determinado texto.

Ler o texto fora de seu contexto histórico cultural, sócio, político e econômico, pode-se cometer vários equívocos na sua interpretação. Um determinado texto fora do contexto pode se transformar num mero pretexto para justificar os interesses de quem está lendo. É por este motivo que fazemos uso daquilo que chamamos de “Sitz im Leben”. Este termo é usado na exegese bíblia para situar o texto dentro de seu contexto próprio, referindo-se às circunstâncias em que ocorreu a sua escrita. Desta forma, o “Sitz im Leben” preocupa-se com a funcionalidade original de um determinado texto no contexto de sua escrita.

A liturgia desta segunda feria nos traz um texto bastante específico que precisa ser entendido na sua originalidade e passar pelo crivo da hermenêutica do “Sitz im Leben”: “os mestres da Lei e os fariseus trouxeram uma mulher surpreendida em adultério”. (Jo 8,3) Para início de conversa, tal situação remonta a uma citação do Antigo Testamento que assim dizia: “O homem que cometer adultério com a mulher do seu próximo se tornará réu de morte, tanto ele como a sua cúmplice”. (Lev 20,10) Ambos os adúlteros não tinham sequer a chance de defesa na tentativa de sobreviver, pois eram apedrejados até a morte.

Entretanto, no contexto do texto evangélico de hoje, apenas a mulher fora trazida até Jesus, demonstrando assim o quanto de machismo existia na sociedade judaica, uma vez que o adúltero não estava ali para também ser julgado. Um machismo patriarcal estrutural e institucionalizado: homens julgando uma mulher e querendo que Jesus endossasse os seus propósitos, condenando aquela mulher que já havia sido julgada por eles. Na realidade, o julgamento da mulher era apenas um pretexto, pois quem estava sendo julgado mesmo era o próprio Jesus, para ver assim se cumpriria ou não a Lei Mosaica.

Jesus, com a sua pedagogia libertadora desmascara aquela sociedade, devolvendo aos machões de plantão o poder de decisão a partir dos seus próprios pecados: “Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. (Jo 8,7) Para Jesus o mais importante nem era o cumprimento ou não da Lei, mas aquilo que a Lei tinha de justiça, de misericórdia, uma vez que a pessoa humana está acima de qualquer lei. Na concepção humanista libertária de Jesus, a pessoa humana é superior e está acima de qualquer lei. Ninguém de nós tem o poder de julgar e condenar quem quer que seja, uma vez que cada um de nós trazemos dentro de nós nossas incoerências, contradições, erros e acertos (pecados). Devemos, pois, fazer como Jesus que não veio para julgar, uma vez que o Pai não quer a morte do pecador, conforme já nos dizia o profeta Ezequiel: “Não quero a morte do pecador, diz o Senhor, mas que ele volte, se converta e tenha vida”. (Ez 33,11)

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.