Somos um país de cristãos. Ou melhor, somos um país de católicos. O dia de hoje, é um dia especial, quando os católicos celebram a festa do Corpo de Cristo. A pergunta que fica é: em pleno século XXI, em meio a uma pandemia avassaladora, faz sentido celebrar tal cerimônia, com todas as contradições que possam daí surgir? Pergunta esta que vou tentar responder nas linhas que se seguem.
Evidentemente que, para começar responder a esta pergunta, devemos nos questionar se celebrar o Corpo de Cristo é a mesma coisa que participar das missas de sempre, vazias de sentido e significado do que representa tal cerimônia, sem compromisso com nada e com ninguém? Participar de ato em que sou apenas um papa hóstia, que me volto sobre mim mesmo, numa vivência intimista e acomodada da fé, tendo como mais importante, é eu estar bem comigo mesmo e com Deus. O outro? O outro é o outro! Uma fé extremamente egoísta, baseada na teologia da prosperidade, ou seja, se estou quites com Deus, a minha vida prosperará de vento em popa.
Celebrar o Corpo de Cristo é celebrar a cruz de centenas de milhares de corpos desnudos, violados e invisíveis, que passam despercebidos das economias de poucos que se refestelam nos seus banquetes macabros do culto ao “deus mamon”, da riqueza e da cobiça, sugando o sangue dos inocentes.
Celebrar o Corpo de Cristo é celebrar a vida ceifada de dezenas de milhares de corpos de brasileiros, que desceram a cova rasa, sem que lhes fosse dado à chance de um tratamento condigno, a partir de um planejamento estratégico governamental.
Celebrar o Corpo de Cristo é celebrar o corpo abandonado daquela mãe que, nos momentos finais de sua vida, diz ao profissional de saúde, que estava com saudades das suas duas filhas e que iria morrer sem poder dar um abraço de despedida, naquelas que ela tanto amava.
Celebrar o Corpo de Cristo é celebrar a tristeza da família que vê um membro seu, internado num leito de hospital, sabendo que terá poucas chances de sobrevivência, e não poder sequer participar do ritual funerário, para despedir-se daquele ente querido.
Celebrar o Corpo de Cristo é celebrar a limitação e a impotência das pessoas, frente a uma situação que pouco se pode fazer, de um vírus invisível, pronto a atacar em cada esquina de nossas ruas, fragilizando o emocional das pessoas, desequilibrando os seus sentimentos.
Portanto, celebrar o Corpo de Cristo é estar aberto e pronto a ser um agente de transformação, onde quer que me encontre: na família, no trabalho, na escola, na sociedade, na convivência com as pessoas. Quando eu chego à MESA da PARTILHA e aceito comungar do corpo DELE, significa que estou assumindo com ELE, a luta para implantar entre nós o seu REINO. Significa lutar pela vida integral das pessoas, no que diz respeito à justiça, trabalho, moradia, comida à sua mesa. Sem estar imbuído desta dimensão maior do CORPO, que é o de Jesus, mas também é o do irmão, de pouco valerá a minha comunhão.
Eis aí uma grande oportunidade para repensarmos as nossas celebrações de missas, mornas e sem vida. Não se trata de cumprir um preceito de comungar por comungar, de um compromisso que faço com Deus. Este compromisso é com Deus, mas que se desdobra na ação transformadora que se faz no dia a dia de nossas vidas. Certamente, não seremos cobrados de quantas comunhões tivemos ao longo do ano, mas para onde estas minhas comunhões me levaram ao comprometimento com a vida, com as pessoas e com o mundo em que vivo.
Aproximar-se do Cristo Eucarístico é aproximar de situações contraditórias que existem no meio de nós, na nossa sociedade. De nada adianta eu comungar deste ato revolucionário que foi o de Jesus de Nazaré, dando a vida até as últimas conseqüências, se não sou capaz de dar passo algum em direção aos corpos que estão sendo sistematicamente impedidos de viver. Que sejamos Eucaristia, comida farta na mesa dos pobres como nos faz pensar o bispo Pedro:
MEU CORPO É COMIDA (PEDRO CASALDÁLIGA)
Minhas mãos, essas mãos, Tuas mãos fazemos este Gesto, partilhada a mesa e o destino, como irmãos.
As vidas em Tua morte e em Tua vida.
Unidos no pão os muitos grãos, iremos aprendendo a ser a unida Cidade de Deus, Cidade dos humanos.
Comendo-te, saberemos ser comida.
O vinho de suas veias nos provoca.
O pão que eles não tem nos Convoca a ser Contigo o pão de cada dia.
Chamados pela luz de tua memória, marchamos ao Reino fazendo História.
Fraterna e subversiva Eucaristia.