Solenidade da Santíssima Trindade: “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”.

Reflexão: Solenidade da Santíssima Trindade
Ano A – 04/06/2023

 Na Liturgia deste Domingo, Solenidade da Santíssima Trindade, veremos, na 1a Leitura (Ex 34, 4b-6.8-9), na 2ª Leitura (2Cor 13,11-13) e no Evangelho (Jo 3, 16-18), que celebrar o mistério da Santíssima Trindade é celebrar o mistério de um único Deus em três pessoas. No Prefácio da missa, rezamos assim:

 “Ó Deus, com vosso Filho único e o Espírito Santo, sois um só Deus e um só Senhor. Não uma única pessoa, mas três pessoas num só Deus. Tudo o que revelastes e nós cremos a respeito de vossa glória atribuímos igualmente ao Filho e ao Espírito Santo. E, proclamando que sois o Deus eterno e verdadeiro. Adoramos cada uma das pessoas na mesma natureza e igual majestade” (Missal Romano, p. 379).

 O mistério da Trindade Santa, um só Deus em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, não é um mistério das ciências exatas, como se fosse possível colocar “três em um”, mas é o fundamento da esperança, a força da caminhada e o conteúdo fundamental da fé. Jamais poderemos colocar o mistério em nossa cabeça e esgotá-lo em nossa compreensão intelectual, mas podemos colocar a cabeça no mistério e, mesmo dentro das limitações da linguagem humana, tentarmos expressar esse mistério a partir do compromisso que Deus tem para com a pessoa humana e a sociedade. Mais importante do que encontrar fórmulas filosóficas ou teológicas abstratas para expressar o que, no fundo, não é possível definir, é descobrir o que a doutrina da Trindade pode ensinar para a nossa vida cristã.

 O mistério da Trindade tem uma revelação progressiva na história, como diz o Catecismo da Igreja Católica. São Gregório de Nazianzo, ‘o Teólogo’, explica esta progressão pela pedagogia da ‘condescendência’ divina:

O Antigo Testamento proclamava manifestamente o Pai e mais obscuramente o Filho. O Novo manifestou o Filho e fez entrever a divindade do Espírito. Agora, porém, o próprio Espírito vive conosco e manifesta-se a nós mais abertamente. Com efeito, quando ainda não se confessava a divindade do Pai, não era prudente proclamar abertamente o Filho: e quando a divindade do Filho ainda não era admitida, não era prudente acrescentar o Espírito Santo como um fardo suplementar, para empregar uma expressão um tanto ousada […] É por avanços e progressões ‘de glória em glória’ que a luz da Trindade brilhará em mais esplendorosas claridades” (CIC, 683).

Sabemos que, desde o princípio, Deus não é só-lidão, mas comum-união, comunhão, comunidade, família, relação, comunicação, perdão, amor. Nossa família terrena deveria ser reflexo da Trindade: iguais e diferentes. Na bíblia, encontramos que Deus “criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher” (Gn 1, 26-28). Se fomos criados à imagem e semelhança de Deus, é de um Deus que é Trindade, que é comunidade, unidade perfeita na diversidade. Assim, só podemos ser pessoas realizadas à medida que vivemos comunitariamente. Quem vive só para si está destinado à frustração e infelicidade, pois está negando a sua própria natureza.

Só recentemente as ciências humanas confirmaram o que milenarmente a revelação já tinha antecipado: o ser humano é social por natureza, o social é intrínseco à sua natureza. Não pode viver só, o único animal, na face da terra, que morre se não viver em comunidade, todos os outros animais sobrevivem por si mesmos. Portanto, se a pessoa humana se fechar em seu mundo e ausentar-se da boa convivência é como se morresse (e morte é frieza, incomunicação, sofrimento). A Palavra de Deus diz: “Quem não ama carrega dentro de si um germe homicida” (1Jo 3,15), carregar um germe homicida é carregar uma bomba atômica que, se detonada, destrói meio mundo. Que triste, que pena!

Viver a fé trinitária é viver no Deus amor, quem muito ama, muito se comunica, toma a iniciativa para o diálogo, para a paz, sempre disposto a perdoar e a começar de novo.  O pecado é a negação da comunicação, equivale a morte espiritual.

O pecado se opõe ao Reino, porque consiste no rechaço voluntário de o homem viver em comunhão com Deus e seu próximo, para adorar-se a si mesmo ou às coisas. Ele se converte em escravo dos ídolos.

Reconhecer o Deus Trindade e comprometer-nos com Ele é abandonar os falsos deuses ou os ídolos modernos que nos cercam a todo o momento: o consumismo desenfreado; o ter sempre mais, em prejuízo dos outros; o individualismo, que nos fecha os olhos aos irmãos necessitados; o comodismo, que nos imobiliza diante da necessidade de nos envolver com a transformação das estruturas injustas; o culto ao corpo, à beleza física, como sublimação de complexos e do mito da eterna juventude. Somos o que amamos. Se amarmos somente a nós mesmos, seremos solidão individual; se amamos a todos, somos comunidade de amor. A vida eterna consiste nisso: Comunidade de amor. Celebrar a festa da Trindade é viver o mistério do amor de Deus, que nos criou para que vivêssemos comunitariamente na sua imagem e semelhança.

Enquanto ruptura de comunhão, todo pecado destrói, também, a Comunicação e a participação: é, por essência, traição, negação do diálogo, solidão e marginalização. Todo pecador é um filho pródigo que foge da casa de seu Pai, é um Caim à procura da morte de seus irmãos (Gn 4,8-10). A nível social, seu resultado é Babel: confusão de línguas, incapacidade para comunicar-se, divisão (Gn 11,1-9).

O pecado perverte todas as formas de comunicação. É fonte permanente de enganos e impede a comunicação humana de permanecer na verdade para a qual nos chama a palavra de Deus (1Jo 2,21-25). Repito: “Quem não ama (comunica a verdade), leva dentro de si um germe homicida” (1Jo 3,15).

A comunicação é dimensão essencial da natureza do homem: social, antropológico. Temos como princípio bíblico: “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gn l,27).

O Ser humano, homem ou mulher, criado à imagem e semelhança de Deus, não pode realizar-se fora da dimensão desta imagem e semelhança. Dignidade e Vocação Universal. Deus é Amor=Comunicação=Trindade=Comunhão.

A grande crise existencial: Nunca, na história da humanidade, o homem possuiu tantos meios de comunicação, nunca o homem passou por uma solidão tão profunda. Falta espaço para a intercomunicação. “Para onde irei? Para onde fugirei?” (Sl 138).

A grande crise: Falta de abertura. Deus não salva uma pessoa (comunidade) fechada. Quem sou eu? Deus interpela: “Adão, Adão, onde estás?” (Gn 3,8-13). “Abraão, Abraão? Chega de pensar só em ti, deixa tua terra?” (Gn 12,1-3) “Samuel, Samuel? O que queres de mim?  Eis-me aqui!” (1Sm 3,1-10). “Saulo, Saulo?” (At 9,1-9). Falta de relacionamento, falta de verdade. “A verdade vos libertará” (Jo 8,32).  “Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6).

Sobre a verdade (comunicação) da minha vida, nasce a vida nova; da costela (da humanidade de Adão, abertura), nasce outra vida, reconhecida como: “carne da sua carne e ossos dos seus ossos” (Gn 2,23).

Uma pessoa não pode existir só: “Não é bom que o homem esteja só, vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada” (Gn 2,18). O homem pode existir somente como unidade, portanto, em relação a um outro ‘eu’. Mesmo sendo Rei do universo, só o homem cai numa solidão profunda, não tem um auxiliar que lhe seja semelhante: “O homem pôs nomes a todos os animais, a todas as aves dos céus e a todos os animais dos campos; mas não se achava para ele uma ajuda que fosse adequada” (Gn 2,20). A criação: plantas, átomos, reinos: mineral, vegetal e animal refletem a comunhão de Deus.

A Trindade compreendida humanamente como comunhão de Pessoas funda uma sociedade de irmãos e de irmãs, de iguais, em que o diálogo e o consenso constituem os fundamentos da convivência, tanto para o mundo quanto para a Igreja. Se hoje existem cristãos divididos e não cristãos é porque nós não soubemos testemunhar o nome de Deus.

Respeita o Deus Trinitário somente uma comunidade cristã una, única e unificante, sem domínio e opressão, e uma humanidade una e única, sem domínio de classe e sem opressão ditatorial. A Trindade se entrega ao nosso conhecimento, na vida e na prática de Jesus. Jesus age em nome do Pai em favor dos homens, particularmente dos pobres e pecadores, e é o Espírito que nos leva a acolher o Filho e nos incita a adorar o Pai. O Espírito Santo emerge como a força do ‘novo’ e como uma renovação de todas as coisas. A atuação do Espírito Santo é eminentemente criadora, voltada para o futuro. Toda criação implica ruptura, crise do estabelecido e abertura para o ainda não conhecido e ensaiado. O Espírito liberta da obsessão da origem e do desejo de voltar ao útero paradisíaco, cujo acesso está definitivamente fechado (Gn 3,23). Ele nos move para a terra prometida e para o destino que se deve construir e revelar no amanhã.

A força do ‘novo’ reside em ser ‘memória’ da prática e da mensagem de Jesus, com o prolongamento da encarnação para dentro da história humana, pois libertará os homens de todas as situações de pecado.

Dentro deste contexto, o pecado seria o homem querer construir um mundo sem Deus. Pode o homem construir um mundo sem Deus, mas este mundo acabará por voltar-se contra o homem. “Sem o criador, desaparece a criatura”, dizia o Concilio Vaticano II (GS, 36); e acrescentava: “Pelo esquecimento de Deus a própria criatura torna-se obscura”. O mistério do homem só é desvendado e iluminado pela realidade de Deus.

Na história, Deus sempre faz Aliança com os seres humanos e os chama para restabelecer a comunhão. Exemplos:  Abraão, Moisés, Maria, Paulo, cada um de nós.

A Comunidade é ‘ícone’ (imagem bela, perfeita) da Trindade, somos batizados (marcados na história) em nome da Trindade e inseridos na comunidade. Nosso destino, também, será a Trindade, comunhão eterna, a celebração da missa já antecipa, de certa forma, esse futuro. Se hoje moramos geograficamente em lugares diferentes, um dia, no entardecer de nossa vida, iremos para o mesmo fim, iremos para uma única direção: a casa do pai, casa trinitária, a melhor comunidade, “Dele viemos, a Ele retornaremos”.  Enquanto caminhamos para esse fim, vivamos a espiritualidade trinitária. As pessoas mais ‘completas’, que são ternas, os grandes santos e santas da história cultivaram e cultivam uma espiritualidade trinitária, rezavam e rezam na Trindade. Rezemos, também, nós:

“Ó Deus, nosso Pai, enviando ao mundo a Palavra da verdade e o Espírito santificador, revelastes o vosso inefável mistério. Fazei que, professando a verdadeira fé, reconheçamos a glória da Trindade e adoremos a Unidade onipotente” (Missal, Oração da Coleta).

Boa reflexão e que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus.

 


Padre Leomar Antonio Montagna é presbítero da Arquidiocese de Maringá, Paraná. Doutorando em Teologia e mestrado em Filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Câmpus de Curitiba. Foi professor de Teologia na Faculdade Missioneira do Paraná – FAMIPAR – Cascavel, do Curso de Filosofia da PUCPR – Câmpus Maringá. Atualmente é Pároco da Paróquia Nossa Senhora das Graças em Sarandi PR.