“Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz… Não se perturbe, nem se atemorize o vosso coração” (Jo 14, 27)

Reflexão litúrgica: quinta-feira, 26/10/23,
29ª Semana do Tempo Comum

 Na Liturgia desta quinta-feira, 29ª Semana do Tempo Comum, na 1a Leitura (Rm 6,19-23), o Apóstolo Paulo recorre à imagem muito conhecida na cultura romana: escravidão e liberdade. Ao usar essa linguagem, ele propõe passar da escravidão do pecado para a liberdade cristã. Isso equivale a colocar-se a serviço de Deus e de sua justiça, para colher os frutos da santificação e objetivar a vida eterna. A tirania do pecado sobre o próprio corpo leva à morte temporal e eterna e é só motivo de vergonha. Contudo, feito servo de Deus, o cristão atinge a verdadeira liberdade, que lhe permite fazer obras de santidade e conquistar a vida eterna. De fato, o pecado paga a seus súditos com a ruína total, ao passo que o serviço de Deus conduz à vida eterna, totalmente fundada sobre a bondade de Deus e o sacrifício de Cristo.

No Evangelho (Lc 12,49-53), Jesus nos apresenta a radicalidade do Reino e as exigências que daí brotam para quem adere à sua proposta. A proposta de Jesus, no entanto, pode levar à divisão, pois é uma proposta exigente e radical, que provocará a oposição de muitos. Ele mesmo enfrentou a morte, para que se realizasse o plano do Pai e o mundo novo se tornasse uma realidade palpável. Jesus veio revelar aos homens a santidade de Deus. A sua proposta destina-se a destruir o egoísmo, a injustiça, a opressão que impedem a dignidade humana, a fim de que surja o mundo novo de amor, de partilha, de fraternidade e de justiça.

A proposta que Jesus nos faz é provocante, não deixa as pessoas indiferentes. Alguns acolhem-na positivamente, outros rejeitam-na. Alguns vêm nela uma proposta de libertação, outros não estão interessados nem em Jesus nem nos valores que Ele propõe. Como consequência, haverá divisão e desavença, às vezes, mesmo dentro da própria família, a propósito das opções que cada um faz em face de Jesus. Sua palavra e sua própria pessoa trarão à luz o que está mais oculto no profundo do coração humano, pois exige uma decisão de aderir à sua proposta e assumir as consequências que daí provêm, ou permanecer em ambiente de paz ilusória.

O cristão, ao se pôr do lado de Cristo, entra, por isso mesmo, na luta. Não pode considerar-se nem se conservar um neutro; para muitos, é um inimigo, mesmo que queira ser um “Francisco de Assis”. Jesus exige opção. Não é possível ficar em cima do muro. “Um exemplo: a filha de um industrial quer dedicar-se aos pobres, mas não de modo assistencialista, distribuindo esmolas, pois isso seria como encher um balde furado; o que ela colocaria dentro desse balde seria tirado pelo sistema econômico sustentado por seu pai (pela inflação, pelo arrocho salarial etc.). Portanto, ela decide lutar contra esse sistema. Entra em choque com o próprio pai, por mais que goste dele” (Revista Vida Pastoral, nº 310, p. 58). E o Papa Francisco está sendo aceito pacificamente, tem até gente influente dentro da Igreja rezando assim: “Senhor iluminai-o ou eliminai-o”.

Jesus diz que esta divisão pode ocorrer, também, dentro da família: entre pai e filho, mãe e filha, irmão e irmã, nora e sogra. E, lamentavelmente, sabemos que isso, às vezes, é certo e doloroso. A pessoa que descobriu o Senhor e quer segui-lo seriamente se encontra, com frequência, na difícil situação de ter de escolher: ou contentar aos de casa e descuidar Deus e as práticas religiosas, ou seguir estas e estar em contraste com os seus que lhe jogam na cara, a cada minuto, que dedica a Deus e às práticas de piedade. Mas o choque chega, também, mais profundamente, dentro da própria pessoa, e se configura como luta entre a carne e o espírito, entre o clamor do egoísmo e dos sentidos e o da consciência. A divisão e o conflito começam dentro de nós. Paulo o explicou de forma maravilhosa: “A carne de fato tem desejos contrários ao Espírito e o Espírito tem desejos contrários à carne; estas coisas se opõem reciprocamente, de maneira que não fazeis o que gostaríeis”.

Havia algumas outras palavras de Jesus ditas num contexto de urgência de conversão frente à iminência do Reino que, lidas com outra ótica, poderiam causar mal-entendidos políticos: “Não vim trazer a paz, mas sim a espada” (Mt 10,34); “Vim trazer a ruptura” (Lc 12,51). Mas, evidentemente, Cristo não quis violência. Manda que amemos os inimigos (Mt 5,44-48). Não aprova a espada: “Põe a tua espada na bainha, Pedro, porque todos aqueles que tomam a espada perecerão por ela” (Mt 26,52).

Jesus veio trazer a paz e a unidade no bem, a que conduz à vida eterna, e veio tirar essa falsa paz e unidade que só serve para adormecer as consciências e levar à ruína. Ele distingue dois tipos de paz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não é à maneira do mundo que eu a dou. Não se perturbe, nem se atemorize o vosso coração” (Jo 14, 27). Depois de ter destruído, com sua morte, a falsa paz e solidariedade do gênero humano no mal e no pecado, inaugura a nova paz e unidade que é fruto do Espírito. Esta é a paz que Jesus quer nos oferecer.

Boa reflexão e que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus.

 


Padre Leomar Antonio Montagna é presbítero da Arquidiocese de Maringá, Paraná. Doutorando em Teologia e mestrado em Filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Câmpus de Curitiba. Foi professor de Teologia na Faculdade Missioneira do Paraná – FAMIPAR – Cascavel, do Curso de Filosofia da PUCPR – Câmpus Maringá. Atualmente é Pároco da Paróquia Nossa Senhora das Graças em Sarandi PR.