A segunda conversão

Aprofundamento da opção de vida

Leitura orante: At 9,19b-31; Gl 1,15-2,1; 2Cor 12,1-5

A experiência vocacional de Saulo não se deu num momento único, mas teve desdobramentos durante um longo período de tempo. Depois do “evento fundante” no caminho de Damasco (“primeira conversão”), precisou ainda passar por um árduo tempo de provação, redimensionamento e aprofundamento de sua opção de vida, para que pudesse tornar-se o grande apóstolo Paulo, intrépido evangelizador dos pagãos. Esse espaço de tempo, de mais ou menos dez anos, costuma ser chamado de “segunda conversão”. Apesar de ser abordado com sobriedade na Bíblia poderíamos descrevê-lo como um tempo de crise profunda de crescimento, que vai habilitar Paulo à vivência madura do testemunho de Jesus e à pregação do evangelho.

O longo período da “segunda conversão” foi marcado por experiências aparentemente negativas, que Paulo precisou integrar em seu itinerário de fé cristã e de identificação com o mestre Jesus. Desilusão… incompreensão… perseguição… fuga… deserto… silêncio… solidão… são algumas marcas dessa fase obscura e desafiadora da vida de Paulo, que provavelmente termina com a grande visão de que fala 2Cor 12,1-5.

Como lemos em Atos 9,20ss, poucos dias após o encontro com o Ressuscitado, Paulo inicia sua missão de testemunha de Jesus na sinagoga de Damasco. No entanto, a mudança ocorrida não foi bem aceita pelos judeus. Sofre sua primeira decepção. Ameaçado de morte, precisou fugir de noite, descendo pela muralha da cidade, oculto num cesto (At 9,24-25). Chegando em Jerusalém, praticamente vai acontecer a mesma coisa. A comunidade tem resistência em acolhê-lo. Graças à mediação de Barnabé, consegue ser aceito, mas logo em seguida os helenistas tramam contra a sua vida e deve fugir novamente, primeiro para Cesaréia e depois para Tarso (9,29-30), numa espécie de volta às próprias raízes. Segue-se o longo período de solidão na pátria e de desconforto, pois se sente marginalizado pelas comunidades cristãs.

Por que Deus permitiu que Paulo passasse por essa fase duríssima de purificação e de provação? Que sentido o Apóstolo descobriu nas experiências difíceis desse longo período de aprendizagem? Certamente as primeiras frustrações sofridas ensinaram-no a não confiar nas próprias forças e a entender que a obra era de Deus e não dele próprio. Paulo precisou rever suas motivações e abrir mão da excessiva confiança em suas próprias qualidades. Talvez ele tivesse pensado que iria converter os judeus utilizando as técnicas rabínicas de interpretação da Escritura, que tão bem dominava… ou mesmo que iria convencer seus ouvintes recorrendo à retórica clássica dos gregos, na qual era versado. Antes de tornar-se o grande apóstolo, Paulo deverá superar todo orgulho, vaidade, prepotência e apego à sabedoria humana.

Como Paulo terá vivido essa desafiante provação? Podemos imaginar que terá passado, antes de tudo, por momentos de indignação, ressentimento, desejo de desforra. É difícil aceitar os planos da Providência e a maneira misteriosa e incompreensível da ação divina na história. Progressivamente, abriu-se para a reflexão e a oração e, com a graça de Deus, deixou-se questionar: “E se houvesse também aqui uma palavra providencial de Deus para mim?” Certamente, lendo e relendo as Escrituras, foi curado pela Palavra de Deus que nele agia em sua função de bálsamo, libertação e consolação. O Apóstolo aprendeu a deixar a Palavra de Deus mandar em sua vida; aprendeu a submeter-se a ela. Paulo tratou de redimensionar seu zelo apaixonado, abrindo-se ao projeto inovador do Reino de Deus, projeto superior aos seus caprichos pessoais e interesses imediatos. Assim, recebeu também uma iluminação interior: a obra é de Deus; é Ele quem estabelece tempos e condições; é Ele quem abre caminhos para a missão e nos inspira como agir.

Paulo viveu a “segunda conversão” como um forte apelo ao total desapego e abandono confiante nas mãos da Providência. Reconhece sua condição de simples servo, de colaborador de Deus (cf. 1Cor 3,5- 9).“Através das experiências dolorosas, Paulo chega à percepção muito simples de que Deus é o Senhor e de que o ministro de Deus se prepara libertando o coração de tudo aquilo que poderia ser êxito próprio, tornando-se instrumento sempre mais apto nas mãos de Deus” (Cardeal Martini).

À luz da experiência de Paulo, você é convidado a refletir sobre a “segunda conversão”, ou seja, sobre a necessidade de aprofundamento contínuo de sua opção de vida. “Não se pede que sejamos invulneráveis, mas que abramos os olhos ao desígnio misericordioso de Deus. Como para Paulo houve um caminho de misericórdia, assim também para nós: em todas as dificuldades, pequenas e grandes, que o nosso compromisso apostólico comporta, há uma palavra misericordiosa de salvação” (Cardeal Martini). Quando é que você se converteu dessa segunda maneira? Ou o que está dificultando para que essa segunda conversão aconteça? Houve momentos em que sua primeira conversão foi posta à prova? Como é que você tem lidado com essas crises da vida: desilusões… incompreensões… fugas… desânimo… momentos de deserto… solidão… dificuldades no relacionamento… doença…? Você compreende a vida do ministro ordenado apenas em sua dimensão funcional (fazer coisas) ou já descobriu a riqueza de sua dimensão simbólica: ser amigo de Jesus (cf. Jó 15,15)…“ser todo de Deus para os outros, ser todo dos outros para Deus”? Qual é a qualidade do seu zelo para com o Senhor e a obra dele?

“Amar é despojar-se e despir-se por Deus de tudo o que não é Deus” (São João da Cruz). Peça a Deus a graça do despojamento de tudo o que é acessório e/ou supérfluo para valorizar mais a presença dele e a intimidade com Ele… Isso constitui a “melhor parte”, o valor maior da vida cristã, consagrada e ministerial.