Os tempos são obscuros. No cenário político, nebuloso sem perspectiva de um novo amanhã. A pandemia nos ensina de que o dia de amanhã será diferente do que já vivemos até aqui. Neste cenário, ficamos nos perguntando: Que mundo queremos para nós e os nossos? Que tipo de sociedade vamos construir a partir de agora? Como serão as nossas relações na pós-pandemia. Alguns já sinalizam que viveremos o tempo da pós-verdade, pois já estamos vivendo o reinado onipotente da mentira. Mentira utilizada para difamar, destruir, dilacerar, aniquilar, aqueles que são os adversários políticos. Proibido pensar diferente. É a hegemonia do pensamento único.
Os bispos da Igreja Católica, que assinaram a “Carta ao Povo de Deus”, que o digam. Estão sendo massacrados nas redes sociais. Alguns dos ataques estão partindo de pessoas que se dizem de dentro da própria igreja. São os católicos de plantão. O que precisa saber é se, além de católicos, são também cristãos. Nesta mesma toada, algumas das redes católicas de rádio e televisão, também se recusaram a divulgar a carta dos prelados. Ao contrário, teceram comentários maldosos, acusando os signatários da carta pelos codinomes mais absurdos possíveis. A que ponto chegamos!
No cenário local, vivemos o luto pela morte de uma das mulheres guerreiras do povo Iny. Komytira partiu, deixando um rastro de tristeza na aldeia de Santa Isabel do Morro, Ilha do Bananal. Além de mãe de família, era também uma exímia artesã. Como ceramista, era especializada na confecção das Ritxòkò (bonecas), tombadas como patrimônio histórico do povo Iny. Recentemente perdeu o seu companheiro, o professor Marvel Tuilá, um dos grandes alfabetizadores bilingue das crianças na escola da aldeia. Exercia a função de educador com uma paciência invejável. Morreu vítima de um câncer na garganta. Mais uma matriarca que se foi e a comunidade nem sequer pode fazer o velório tradicional da cultura, cheio de nuanças e significados.
Neste atual contexto que ora vivemos, tristeza tem nome e sobrenome. O coração bate descompassado no peito, por tantas perdas de vidas. Tantas histórias interrompidas. No meio indígena, a morte de pessoas como Komytira, são muito sentidas, pois são verdadeiras guardiãs dos conhecimentos/saberes tradicionais do povo a que pertence. Um saber que não será recuperado jamais, pois descerá ao túmulo com aquela pessoa que se vai. Um saber que se preocupa com uma tríplice dimensão: do corpo, da mente e do espírito e que dá sentido a cultura de um povo originário que está no mundo e o mantém vivo.
No reino da mentira, o que vale é o que está posto ali. Mesmo desprovido do senso da verdade, o que prevalece é o que fora dito ali. E aí daqueles que estiverem nesta mira. Os guardiões da pós-verdade se especializaram em aniquilar seus inimigos. Implacavelmente. Desde pequeno aprendi com a minha mãe que a verdade tem pernas curtas. Embora concordando com a minha mãe, devo também fazer um adendo: ela pode até ter pernas curtas, mas caminha apressadamente rumo a destruição do outro.
Enquanto vou aqui discorrendo sobre estes vários assuntos, me vem à mente o depoimento daquele jovem rapaz, vendedor de água mineral no semáforo. Na sua caixa de isopor havia estampada a foto de uma criança pequena. Aquela criança é a sua filha e ela o motivava a trabalhar mais e mais para voltar para casa e levar o sustento para sua família. Muitos dos transeuntes o maltratava, mas a cada vez que isso ocorria, ele olhava para a foto da sua filha e encontrava forças para continuar o seu trabalho sem desanimar.
A pandemia vai passar e nós vamos continuar a nossa vida. O tempo que virá terá que diferente. Ser um novo tempo. Um tempo novo. Tempo de olhar mais para as pessoas que estão ao nosso lado. A maior queixa de quem está em situação de rua é a de que as pessoas não os vêem, dizia uma destas pessoas. “Eles passam e não nos vêem. Eles não olham nos nossos olhos.” Teremos a grande chance de recomeçar. Construir uma vida nova, onde o ser humano seja colocado no centro de tudo e não a economia, o mercado ou os bens. O maior bem que temos entre nós são as pessoas. Elas, sim, são o nosso maior patrimônio, dando um basta na deusa mentira e nos seus arquitetos.