A Missão no contexto urbano

O Concílio Vaticano II marca uma transformação profunda na compreensão missionária da Igreja. Mudou os pressupostos fundamentais que orientavam as atividades missionárias, no passado da Igreja por muitos séculos. Ad Gentes vai recuperar quatro conceitos fundamentais para atividade missionária da Igreja: a realidade, a comunidade, a Palavra de Deus e o Espírito Santo. Dessa nova concepção a Igreja vai orientar sua missão como algo vital, próprio de sua essência, que deriva da própria Santíssima Trindade e continua a obra de Jesus, em vista da construção do reino de Deus. Assim define Ad Gentes: ¨A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na «missão» do Filho e do Espírito Santo (6). Este desígnio brota do «amor fontal», isto é, da caridade de Deus Pai, que, sendo o Princípio sem Princípio de quem é gerado o Filho e de quem procede o Espírito Santo pelo Filho, quis derramar e não cessa de derramar ainda a bondade divina, criando-nos livremente pela sua extraordinária e misericordiosa benignidade, e depois chamando-nos gratuitamente a partilhar da sua própria vida e glória. Quis ser, assim, não só criador de todas as coisas, mas também «tudo em todas as coisas» (1 Cor. 15,28), conseguindo simultaneamente a sua glória e a nossa felicidade. (AG 2).

A missão projeta a Igreja a frente de si mesma, da cultura, da vida das pessoas, convidando a cruzar fronteiras, porque considera a realidade que se destina, tendo a comunidade como agente, a Palavra de Deus como conteúdo e a ação carismática que o Espirito suscita, como dinâmica. Entendido em seu contexto histórico o documento Ad Gentes do concílio é um avanço profundo quando convida “olhar a realidade com mais humildade, sabendo que é maior e complexa que as simplificações com que costumávamos ver no passado no muito distante” (DA 36). A nova eclesiologia da Igreja como Povo de Deus resgata a ideia de povo peregrino, estrangeiro.   

O caminho aberto pelo concílio gerou um desenvolvimento profícuo que vai estar reflexo nos documentos do Magistério posterior. Paulo VI tem um documento paradigmático que é Evangelli Nuntiandi, que diz que ¨é um processo complexo, global e dinâmico através da qual a Igreja pela forca divina da mensagem que proclama, trata de converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e coletiva dos homens, a atividade em que eles estão comprometidos, sua vida e ambientes concretos¨ (N18).

Outra contribuição importante para missiologia é o documento do Papa Joao Paulo II Redemptoris Missio. O Papa João Paulo entendia que era imprescindível que a Igreja promovesse um grande empenho para tornar Cristo conhecido por uma grande parte da humanidade que nunca recebeu o Kerigma e que, especialmente na Europa, se realizasse um processo de Nova Evangelização. ¨O número dos que ainda não conhecem a Cristo nem formam parte da Igreja aumenta constantemente; Mais ainda, desde o final do Concílio, quase foi duplicado. Para essa humanidade imensa, tão amada pelo Pai que ela enviou a seu próprio filho, é patente a urgência da missão¨ (RM 3).

 A ideia da Nova Evangelização foi muito perseguida pelo Papa João Paulo II e Bento XVI. Desde do Sínodo dos bispos em 1984, conferencia de Santo Domingo 1992 e no Projeto Novo Millennio Ineunte, foi um eixo condutor.

Mas é em Aparecida e Evangelli Gaudium de Papa Francisco que vamos encontrar os referenciais mais atuais para a identidade missionária da Igreja, e de seus princípios e desafios.

Esses dois documentos vão considerar os valores construídos no Magistério desde do Decreto conciliar Ad Gentes, no contexto da abertura a modernidade e vão atualiza-lo diante dos novos desafios da pós-modernidade. Aparecida vai ser categórica em afirmar que é a força do testemunho a ferramenta mais eficaz na missão: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, senão pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte a vida e, com ele, uma orientação decisiva” (DA, 243).

Ao definir que todos os batizados devem ser discípulos missionários de Jesus Cristo Aparecida apresenta essa nova eclesiologia do Povo de Deus, onde toda a Igreja é missionária em sua identidade. Que a missão não é uma faculdade ou uma atividade eventual, ou de alguns poucos membros da Igreja. Também reforça a prioridade da missão, segundo a opção de Jesus pelos mais pobres, superando um prejuízo antigo na concepção da missão voltada a um território. Aparecida vai ressaltar que os pobres são interlocutores privilegiados da missão da Igreja, pois neles servimos a Cristo e encontramos a Ele, falando dos novos rostos dos pobres: ¨os rostos dos novos excluídos: os migrantes, as vítimas da violência, sem-teto e refugiados, vítimas do tráfico de pessoas e sequestros, desaparecidos, enfermos de VIH e de doenças endémicas, toxicodependentes, idosos , meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia e violência ou de trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, pessoas com capacidades especiais… os indígenas e afro-americanos, campesinos sem-terra e os mineiros” (DA 402).

O Papa Francisco deu um impulso decisivo para que a Igreja possa ser toda missionária, tanto por seus escritos, quanto por sua atuação e testemunho sinaliza a urgência da Igreja por esse em caminho para ser fiel a Jesus. Ele tem tido a coragem de dizer o que em Aparecida já havia sido dito, de que muitas estruturas da Igreja estão caducas, e que gastamos muito tempo e energia numa pastoral de conservação. Que precisamos ser uma Igreja dos pobres para os pobres e não auto referencial, fazer missão não é ato de autopreservação, mas de fidelidade ao Evangelho. Ele diz em Evangelii Gaudium: ¨Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionando mais a evangelização do mundo atual que a autopreservação¨ (EG27). O Papa entende que a missão pode transformar a Igreja, a luz do Espírito para que ela possa anunciar o Evangelho no mundo de hoje, numa linguagem que toquem os homens e mulheres do nosso tempo.     

Imperativos, obstáculos e desafios da missão no ambiente urbano

O fenômeno urbano é uma realidade que se impõem sobre qualquer elaboração teórica que se proponham a dialogar e apresentar um conteúdo aos homens e mulheres do hoje. Considerar a complexidade da realidade urbana, as novas formas de relacionar-se, trabalhar, se divertir, consumir, conviver e até viver a fé das pessoas hoje é um requisito fundamental. Também sobram estudos apontam que nossas principais atividades missionárias e estruturas pastorais tem como pressuposto a realidade rural. Essa constatação se confirma quando adotamos um instrumento de avalição de nossas ações e verificamos que alcançamos cada vez menos resultados, atingindo cada vez menos pessoas em nossa pastoral. Com essa concepção da missão da Igreja construída desde o concílio até o recente magistério do Papa Francisco apontaremos os imperativos, obstáculos e desafios para a missão da Igreja no mundo de hoje. 

Uma Igreja em Saída: A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em prática» Jo 13, 17 (EG24).

Obstáculos: A Igreja tornou-se auto referencial, o institucional sobrepôs o carisma. Por isso, tantas as vezes na história, e até nos dias de hoje, se concebeu a missão como uma ação de proselitismo, de ganhar adeptos, aumentar os territórios levando a instituição, sacramentalizar. Ser cristão perdeu a dimensão carismática e criativa, para passar a ser a observâncias de normas morais e rituais. A catequese esvaziou-se do sentido de iniciação e mistagogia, para simplesmente preparação sacramental. A Palavra de Deus ficou num segundo plano em relação a doutrina. A pastoral de conservação é atividade ordinária.         

Desafios: Centralidade do Reino de Deus no kerigma. Estruturas mais simples e funcionais dentro da realidade de hoje. Processos de iniciação cristã, catequese mistagógica, centralidade da Palavra de Deus como fonte de todo serviço pastoral. 

Uma Igreja em Permanente estado de missão: O Documento de Aparecida, quando reconhece e reafirma o “despertar missionário” da Igreja na América Latina e no Caribe, convoca todos os seus membros a se colocarem em estado permanente de missão (DA 551). Esta convocação nos impele a sair de um marasmo eclesial que leva a um cansaço e estagnação da ação pastoral e a reassumirmos o espírito renovador do Vaticano II, em um permanente diálogo com as diversas culturas, com a sociedade e com o cotidiano das pessoas, nos comprometendo em favor da vida em todos os seus âmbitos (Jo 10,10). Assim conclama o Papa Francisco “Não nos deixem roubar o entusiasmo missionário! ” (EG 80).

Obstáculos: Muitas vezes a ideia de missão foi entendida como uma ação, um programa uma atividade e, ainda, como algo extraordinário a vida da Igreja, atividade de um grupo selecionado ou preparado exclusivamente para esse fim, essencialmente clérigos e religiosos. Essa concepção cristalizada por muito tempo na Igreja e presente até os dias de hoje, estagnou a Igreja e desmobilizou os leigos.

Cultura do encontro: A cultura do encontro é, segundo o Papa Francisco, avessa ao “assédio espiritual”. A paciência de escutar e servir é mais importante do que a fala normativa e imperativa daquele que quer que o outro assuma suas convicções. Qual é a finalidade e quem é o destinatário desse encontro? O papa responde: a carência daquele que tem a maior necessidade “multiplica a capacidade de amar”. Além da gratuidade do amor, a cultura do encontro aponta também para a racionalidade da verdade. Nosso “ir ao encontro” é a atitude de deixar Deus, através de nós, “atrair” os fugitivos de sua bondade e verdade. No encontro, em 29 de agosto de 2013, com jovens da diocese italiana de Piacenza-Bobbio, o Papa Francisco deu também à verdade essa dimensão do encontro: “A gente não tem a verdade, não a carregamos conosco, mas a gente vai ao seu encontro. É o encontro com a verdade, que é Deus, mas precisamos procurá-la”, às vezes jogada na lama (EG 49).

Obstáculo: Vivemos numa cultura onde o individualismo, o egoísmo, o pragmatismo e consumismo são valores. Infelizmente muitas vezes nossas estruturas e pastorais e práticas reforçam esses contra valores. Uma estrutura de culto que não forma comunidade, uma espiritualidade descontextualizada, intimismo e sacramentos oferecidos como produtos tornam a Igreja mais opção de mercado do que uma comunidade de fé. Nossas paróquias muitas vezes massificam as pessoas, tornando os membros uma multidão de anônimos.

Desafios: um grande desafio é promover essa cultura do encontro, que é encontro de irmãos e, ao mesmo tempo, com Cristo. Nossas paróquias devem deixar lugares de oferecer serviços religiosos e se transformarem em estruturas que promovam a cultura do encontro e formem comunidades. Pela cultura do encontro promover a criação de pequenas comunidades que vivam em torno da Palavra, da liturgia e da caridade. Que nossas paróquias promovam o encontro onde cada pessoa seja acolhida e reconhecida.

Conclusão

Assim a missão da Igreja pensada na nova realidade social, onde mais de 80% da população vive nas cidades e mesmo na zona rural as pessoas são influenciadas pelo fenômeno urbano é imprescindível repensar nossos pressupostos, métodos, linguagens e atitude missionária. A missão deve ser entendida como identidade cristã missão de todos os batizados. Não como uma atividade, mas como uma atitude. Considerar a realidade das pessoas e da complexidade da cidade é fundamental para que possamos promover uma verdadeira cultura do encontro, que será uma resposta positiva aos desafios dos contra valores da cultura pós-moderna. Dom Helder sempre dizia: ¨é necessário mudar sempre, para seguir sendo sempre a mesma Igreja de Cristo¨. É necessário liberdade, ousadia e criatividade para superar a pastoral de conservação, libertando-se de estruturas caducas que já não respondem as exigências do nosso tempo. Precisamos de evangelizadores de espirito que anunciem a boa notícia do Reino de Deus. É necessário como nos diz o Papa Francisco que a Igreja testemunhe no munda a alegria do Evangelho.

Referencias

http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651207_ad-gentes_po.html

http://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_exhortations/documents/hf_p-vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi.html

http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_07121990_redemptoris-missio.html

http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html

http://www.vidapastoral.com.br/artigos/pastoral-e-comunicacao/comunidade-de-comunidades-evangelizacao-e-cultura-do-encontro-impulsos-para-uma-agenda-pastoral/

http://www.vidapastoral.com.br/sem-categoria/deus-na-cidade/

http://www.vidapastoral.com.br/artigos/eclesiologia/desafios-da-igreja-na-cidade-atual/

CELAM. Documento de Aparecida. 2007