Guardião dos povos indígenas

Passei uma parte da manhã no túmulo de Pedro. Fui lá fazer a minha oração matinal. Um túmulo simples como Pedro era simples. Um túmulo franciscano, como franciscanamente Pedro vivia. Algumas flores e uma cruz rústica, feita pelos indígenas Xavante. Nada de flores de plástico. Pedro não gostava delas. Para ele, flor, tinha que ser as naturais. É por isso que a simples capela dos fundos de sua casa vive rodeada delas. Fiquei ali rememorando seus feitos entre nós, num misto de tristeza e saudade.

Não há coisa pior na vida do que ser tratado como idiota. Foi assim que me senti diante da fala do militar que está como ministro interino da saúde. Além de nada saber a respeito de saúde publica, tratou-nos como imbecis, ao deixar de falar das 105.564 pessoas que perderam suas vidas, referindo-se apenas aos 2.356.640, que foram recuperados. E ainda se vangloriou ao dizer que o Brasil é o país que mais recupera pacientes infectados pela Covid-19 no mundo. Também nem, sequer citou os 3.229.621. Mas também, para quem disse que números não importam.

Mais uma vez a tristeza invade as nossas vidas no baixo Araguaia. O Povo Iny, da aldeia de Santa Isabel do Morro, perde uma de suas grandes anciãs. A ceramista Kuaxiru Karajá, nos deixou no dia ontem, depois de estar internada em São Félix do Araguaia, vitima de complicações respiratórias da Covid-19. Mais uma artesã na arte de confeccionar com suas mãos hábeis, as bonecas de argila (Ritxòkò). Kuaxiru se junta agora a Komytira. Ambas estão na ancestralidade e enfeitam com a sua arte, e os seus adornos, os guardiões da cultura Iny.

O povo Iny anda assustado e triste com a morte a rondar as suas aldeias. Muitos infectados, apesar de todos os cuidados possíveis. Muitos foram curados. Não com a cloroquina, como queria o “douto” ministro interino da saúde. Estão curados porque o pajé interviu, providenciando um remédio a base de ervas. Amargo como que. Mas está dando resultados, pois muitos fizeram o teste IgG e deu que já tiveram o vírus mas que foram curados. Menos mal.

O Povo Iny possui uma história de luta e resistência, frente à ingerência não indígena. São quatro séculos de contato com os tori (não indígenas). Mesmo com tanto tempo de intromissão em suas vidas, eles mantém viva a sua cultura, a sua língua materna, o Inyrybe (a fala dos Iny), pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê. Habitam em sua maioria as margens do rio Araguaia, na Ilha do Bananal, nos estados de Goiás, Tocantins e também no Mato Grosso. Tanto tempo de contato não os impediu de manter os usos, costumes e tradições do seu grupo étnico. Exímios artesãos na arte cerâmica. Preservaram também os rituais como a Festa de Aruanã e da Casa Grande (Hetohoky), os enfeites plumários, a cestaria e artesanato em madeira e, sobretudo, as pinturas corporais. Lindas! Seu ponto característico são os dois círculos na face, pouco abaixo dos olhos.

A morte de um ancião, de uma anciã, não é a morte de uma pessoa qualquer. Não é um número a menos. É uma história de vida pessoal e toda uma riqueza cultural que se vai. Os indígenas sentem por demais a partida de cada um e cada uma delas. Diferentemente de nós que alojamos os nossos velhos em asilos ou casas de recolhimento, eles incorporam a vida dos seus anciãos na rotina diária das aldeias. São consultados periodicamente, sempre que alguma decisão precisa ser tomada. E não se toma esta decisão sem primeiro ouvi-los atentamente. Não que a morte não chegue um dia, mas eles e elas vivem até o fim dos seus dias, sendo valorizados pelos demais.

O idoso, a idosa não simplesmente um velho que não serve mais. Eles são os guardiões e as guardiãs da cultura de seu povo. “O idoso tem um papel extremamente importante nas sociedades indígenas. Estamos diante de uma perda muito grande do ponto de vista da preservação dessas culturas”, lamenta a médica e antropóloga Luiza Garnelo, da Ensp/Fiocruz, que há mais de 30 anos desenvolve projetos e pesquisas na área indígena do Alto do Rio Negro. Quando o cacique Xavante Damião Paridzané diz que perdeu o grande guardião das causas indígenas, se referindo a Pedro, ele sabe do que está falando e entendemos o porquê do seu choro. Choramos todos nós a cada vez que um deles/as vai embora.