O Evangelho da alienação

Com o coração entristecido, começo os meus rabiscos hoje. Era para ser um dia de alegrias, afinal o domingo sempre é um dia especial. Os Aruanãs não estão cantando e nem dançando hoje. Tudo por causa da dor pela perda de uma de suas principais lideranças, o Iny, Isariri Lukukui Karajá. Era meu vizinho aqui em São Félix e conversávamos longamente sobre os mais variados assuntos. O povo Iny segue perdendo vidas. Só nos últimos dias foram quatro, deixando enlutado este povo tão sofrido. Uma tristeza sem fim invade a nossa alma. Até quando? A notícia boa fica por conta da alta hospitalar do meu amigo, cacique e excelente professor bilíngue, Paulo Krumare, voltando para se recuperar na sua aldeia JK.

Escrevo hoje também influenciado pelas palavras ditas numa homilia do bispo Dom Peter Kohlgraf, da Diocese de Mainz, Alemanha, em uma ordenação sacerdotal neste final de semana. Dizia ele, “Não podemos mais construir o nosso cristianismo e a vida da Igreja apenas sobe tradições”. Também nos assegurou: “Se o cristianismo é agora apenas uma instituição, um reservatório de grandes teorias, então é inevitável que as pessoas voltem as suas costas para a Igreja e o cristianismo, que gradualmente se tornará desinteressante”. Palavras muito fortes ditas ao jovem sacerdote que estava sendo ordenado ali.

Em meio a esta grande pandemia que nos assola, impossível não se perguntar: qual será a Igreja que sairá das cinzas deste momento tão cruel que estamos vivendo? Manteremos a mesma estruturação, em que estávamos acostumados a fazê-la? Que elementos novos traremos, para que as pessoas possam, de fato, sentir e experimentar Deus na sua vivência de fé em nossas comunidades? E de qual Deus estamos falando mesmo? É o mesmo Deus revelado em Jesus de Nazaré?

O certo é que precisaremos nos reinventar. As estruturas arcaicas e pesadas da “paroquialização” das nossas igrejas parecem que não respondem mais aos desafios de ser cristão católico, seguidor de Jesus hoje. Sem falar que o padre passa grande parte de seu tempo, administrando os trâmites burocráticos desta estrutura. Se bem que a preocupação primeira de alguns padres que conheço é necessidade de voltar a celebrar missas. Tenho visto alguns deles que estão com verdadeira crise na sua vocação sacerdotal, porque não celebram mais as suas missas corriqueiras como antes. Alguns até pressionam para abrir logo os seus templos.

Uma das experiências mais ricas que tive na minha vida sacerdotal foi encontrar aqui na Prelazia de São Félix, não aquela estrutura existente na maioria das dioceses. Pedro, ao contrário, nunca quis que esta igreja, fosse nos mesmos moldes paroquiais, vistos por ai afora. A sua preocupação maior era a criação de redes de comunidades. Estas comunidades formavam os regionais. Lembrando que o padre, não era detentor da ultima palavra, mas os conselhos, formados em sua maioria por leigos. O padre acatava a decisão saída dos conselhos. Evidentemente, Pedro assim pensava, para que o clericalismo não predominasse em cada um dos regionais que constituía a Prelazia.

Os padres hoje são muito mal formados. Há alguns deles que nem falar direito sabe. Atropelam a língua portuguesa. As homilias geralmente, são muito fracas de conteúdo. Uma cantilena de repetição de chavões vazios de sentido. Se ao menos compensasse a formação deficiente com uma atuação mais engajada na luta do povo sofrido. Mas nem isso. Muitos amigos meus tem me dito, que nestes tempos de pandemia, em que as pessoas perderam emprego, renda, e com a fome rondando as famílias, quase não se vê nenhuma ação concreta dos padres. Vivem como que escondidos dentro de suas casas. Também conheço alguns assim. Sumiram!

Em 1984, o frei Clodovis Boff publicou um livro que se tornou para mim uma referência na minha prática pastoral: “O Evangelho do Poder Serviço.” Neste livro, Clodovis nos faz uma reflexão profunda de que devemos ser pessoas desapegadas das atitudes, costumes, critérios, formas de vida que o escravizam e oprimem. Através do poder serviço, devemos fazer com que as pessoas, possam sentir e experimentar Deus concretamente na vivência de fé em nossas comunidades. Os ritos e as tradições não devem ser aquilo de mais importante nas nossas igrejas, mas a ação concreta e solidária com os sofredores que são os filhos e filhas prediletos/as de Jesus. Esta é a igreja que, a meu ver, precisa sair da pandemia e ganhar o chão da vida do povo simples. Como costumava dizer Pedro: “Uma Igreja Samaritana.” Uma Igreja em saída (Papa Francisco). Que saia da sua mesmice e abrace definitivamente as causas dos pequenos.