A hipocrisia que machuca

Rezei hoje, como todas as manhãs, ao som dos pássaros no meu quintal. Eles fazem uma verdadeira sinfonia. Planto frutas e as rego regularmente para que os pássaros tenham o que comer neste período do ano, enquanto o fogo lá fora segue destruindo tudo. É assim todos os anos. Jabuticaba, goiaba, acerola, banana, jaca, são consumidas por estes meus “fregueses” que se deliciam com os frutos do quintal. Até as cachorras já se acostumaram com a socialização do espaço.

Um Urutau (ave fantasma em Tupi) solitário fez questão de reger a sinfonia dos demais pássaros, com o seu canto melancólico e assustador. Um pássaro que tem o poder de camuflar-se para não ser visto facilmente em meio às folhagens das arvores. Nunca me esqueço de uma observação feita pelo grande cacique Kayapó Megaron Txucarramãe, me contando que a Anta, emite um som característico, que atrai o Urutau para comer os seus carrapatos. Dizia ele: ao mesmo tempo em que o animal fica livre dos carrapatos que o incomoda, também é beneficiado pela boa coceira, feita pelo pássaro ao retirar o parasita. É a sintonia perfeita presente na mãe natureza.

No momento que vou redigindo estas linhas, sou informado de uma noticia triste. Uma criança de apenas 6 meses de vida, testou positivo para acovid-19, na aldeia de Santa Isabel do Morro (Hawalo). Meu coração se espedaça, quando me deparo com situações como estas. O Povo Iny segue se contaminando mais e mais. Como fazer o isolamento social, numa aldeia indígena, em que todos vivem comunitariamente? Muitas pessoas na mesma casa, convivendo juntas e misturadas. Esse povo que, segundo a sua mitologia, era um peixe que veio do fundo do Araguaia (Aruanã), está padecendo por uma doença que não é sua, mas foi trazida para o nosso meio por um Tori (branco) rico.

A tristeza me acompanha nestes dias difíceis. Como se não bastasse a pandemia, convivemos também com a insensatez das pessoas, frente ao caso da menina de 10 anos, que segue sendo massacrada por julgamentos mesquinhos e hipócritas, pelos cristãos e também católicos de plantão. Infeliz ideia teve o presidente da CNBB, ao publicar um texto, chamando de “crime hediondo”, o procedimento cirúrgico para a retirada do feto de dentro daquela criança. Não demonstrou nenhuma empatia com a causa daquela menor vulnerável. Deu vontade de convidar Vossa Eminência, para pisar o chão da existência daquela criança com os seus pés delicados, antes de emitir o seu julgamento. A cabeça pensa a partir de onde os pés estão pisando.

Já que o presidente da conferencia não foi capaz de demonstrar nenhuma condescendência para com o calvário vivido por aquela criança, eu o convidaria a se perguntar: qual seria a atitude de Jesus de Nazaré perante tal situação? Com certeza o Galileu, não emitiria julgamento tão cruel. Pelo contrário, teria se comportado de forma misericordiosa, abrindo o seu coração, como o fez perante a mulher surpreendida em flagrante adultério (João 8,3-4). Nem nome aquela pobre mulher tinha, de tão machista e patriarcal era aquela sociedade.

Ali no cemitério dos Iny está sepultado o corpo de um homem que, sem dúvida, teria opinião bem diferente dos cristãos, que estão condenando a menina. Pedro, a estas horas, deve estar rolando no túmulo, ao saber de tanta maledicência e hipocrisia. Solidário com as causas dos pequenos, certamente se posicionaria ao lado da família, que nem o nome consegue mais manter resguardado. De saber que muitos dos que estão ali condenando o crime de aborto, são os mesmos que defendem a pena de morte e/ou já postaram fotos suas com armas na mão.

Ontem fizemos a nossa visita de cova a Pedro. É uma prática muito comum aqui na prelazia. Ir ao campo santo (cemitério) para rezar pelas pessoas que estão sepultas ali. O mais interessante que pude observar, nestes dias todos depois do sepultamento de Pedro, são as pessoas mais simples que ali vão. Não vi nenhum dos “graúdos” passando por ali. E o que mais me chamou a atenção é ver que as pessoas se referem a Pedro no presente e não no passado. Para estas pessoas, Pedro não morreu. Está muito vivo nas suas memórias e no legado que deixou. Um homem sem ter tempo para viver de forma hipócrita. Um ser autêntico, que conseguiu ser fiel às suas causas até a sepultura. Que responsabilidade de cada um de nós, ter que levar adiante este legado de Pedro. Pedro vive! Pedro presente! Mais do que nunca.