A rua como “moradia”

O dia 19 de agosto é dedicado ao dia nacional de luta da população em situação de rua. É o dia daqueles que só lhes restou a rua como espaço de moradia. Trata-se de uma verdadeira luta, pois estes visíveis/invisíveis são considerados o “os ninguém” que enfeiam a cidade. São aqueles que as pessoas olham para eles como lixo e não os vêem como pessoas, como seres humanos. “Eu só queria que eles me olhassem nos olhos”, imploram estes deserdados. Não tenho dúvidas que, se Jesus nascesse hoje, a rua seria um dos lugares que Maria teria para ganhar o seu menino Jesus. Até imagino a cena: Jesus deitado num papelão surrado, cercado por homens e mulheres esfarrapados, com seus inseparáveis cachorros.

Morei em São Paulo por alguns anos. Tive que me mudar para a capital para fazer o curso de teologia. Nestes tempos, conheci um garoto, em situação de rua, que vivia pelas cercanias da Praça da República. Um menino muito amável e carente de tudo e de todos. Algumas vezes que passava por ali, conversava com ele para saber das últimas notícias entre eles, e também para dar-lhe um chocolate, uma roupa, um pacote de bolacha recheada, que ele adorava. Depois de um tempo não o vi mais. Fiquei sabendo pelos seus, que havia morrido. Deram-lhe comida com veneno de rato. Fiquei pasmo diante daquela informação.

Tempos atrás, numa formação para professores indígenas numa das aldeias, fui tentar explicar sobre a realidade das pessoas em situação de rua. Por mais que me esforçasse, eles não conseguiam entender aquela situação. Fiz malabarismos para desenvolver uma linha de raciocínio que os fizesse compreender o porquê das pessoas irem parar na rua. No final das contas um professor virou-se para mim e disse: “mas na cidade não tem muitas casas? Não tem nenhum lugar para eles nas casas?” Incompreensível para eles, no meio de tantas casas, não sobrar lugar para quem precisa de uma para morar. De saber que no centro de São Paulo, há 40 mil imóveis abandonados.

Para quem tem a vivência e a compreensão da terra como um bem coletivo, como os povos indígenas, aquilo que não é patrimônio de uma pessoa, mas é bem de todos, não consegue abstrair esse raciocínio perverso que é a posse gananciosa e desenfreada da terra. Este foi também o primeiro enfrentamento de Pedro, enquanto Igreja que se colocou ao lado dos pequenos desde sempre. Foi bastante perseguido por causa disso. Mas ele sempre tinha em mente que este era o preço a ser pago por se colocar ao lado dos ninguém (invisíveis), os despossuídos do “Vale dos Esquecidos”.

É assim que a nossa sociedade vê as pessoas em situação de rua. Na realidade, as pessoas fazem a opção por não enxergar aqueles invisíveis. Além de não os enxergar, ainda tecem comentários preconceituosos a respeito deles, como se aquela condição de vida fosse uma escolha de vida pessoal, como o fez a pobre/rica primeira dama de São Paulo. “Eles enfeiam a cidade”, como ela fez questão em dizer. Alem disso ainda perseguem os poucos que são capazes de dedicarem suas vidas a esta causa tão difícil. São perseguidos, e caluniados como é o caso do padre Júlio Renato Lancellotti, em São Paulo, em virtude do seu trabalho de muitos anos ao lado destes vulneráveis.

Estima-se que haja em torno de 200 mil pessoas vivendo em situação de rua hoje no Brasil. Só na cidade de São Paulo, este número beira os 30 mil. São aquelas pessoas que passam as noites dormindo nas ruas, sob marquises, em praças públicas, embaixo de viadutos e pontes. Até um tempo atrás eram denominadas de moradores de rua, mas hoje, são consideradas “pessoas em situação de rua”. Situação esta que se agrava ainda mais com a chegada do inverno, ocasionando a morte de muitos deles por causa das baixas temperaturas.

Uma chaga aberta em nossa sociedade, incapaz de dar uma resposta a esta demanda social. Inexistem políticas públicas de inclusão destas pessoas. Elas não cabem dentro dos orçamentos e das propostas governamentais dos gestores públicos. As pessoas em situação de rua são consideradas um empecilho para os projetos urbanísticos e turísticos das cidades. São como se fosse lixo a ser removido. Poucos de nós olham para eles. A grande maioria, não olha para eles. Não olham nos olhos deles para verem que são gente e que merecem ser tratadas como tais. Os invisíveis perante a sociedade hipócrita dos pobres homens/mulheres ricos/as.