Uma eclesiologia para os nossos dias

Seguimos ainda sob o ritmo do fogo. Cuiabá, uma das capitais mais quentes do país, amanheceu coberta por uma espessa fumaça. Não se consegue enxergar um metro a frente, pelo menos foi isso que os telejornais mostraram nesta manhã de quarta-feira (16). A umidade relativa do ar está na casa de 6%. Impossível ter saúde de qualidade sob estas condições. Cuiabá está sendo “Cuiabrasa”, literalmente.

Mesmo assim, a eminência parda que está na vice-presidência do país, insiste em negar que estamos em chamas. Segundo este ser notável, são imagens deturpadas e distorcidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (IMPE). Coisas da oposição ao governo, do ilustre ser que acha que nos governa. Em outras palavras, tudo o que ora estamos passando não existe, e nem é real toda essa fumaça, que paira sobre as nossas cabeças. Os animais silvestres também não estão sendo queimados pelo fogo.

Nossos indígenas pedem socorro. Se antes o medo era da pandemia, agora é do fogo, que chega cada dia mais próximo às aldeias. Ou nos unimos para combater estes crimes ambientais, cometidos pela turma do latifúndio, mancomunados com o governo que ai está, ou todos nós pagaremos um alto custo por tamanha destruição da flora, fauna e dos povos originários. Os indígenas já falam da necessidade de “indigenizar” os nossos corações e atitudes, na perspectiva de defesa da mãe natureza. Na realidade, trata-se de estabelecer um compromisso com o futuro da humanidade.

Só fui dormir ontem, depois de ler a brilhante conferência, proferida do dia 03 de setembro, pelo teólogo italiano Andrea Grillo: “Ministérios, liturgia, eucaristia. Chances para além do clericalismo”. Este teólogo toca em pontos que tem sido objeto das nossas conversas, nestes últimos meses, sobre a caminhada da nossa Igreja entre nós. Muito feliz e pontual nas suas colocações. (http://www.ihu.unisinos.br/602845-a-liturgia-como-tela-e-a-tentacao-da-simples-administracao-artigo-de-andrea-grillo)

Um dos pontos que ele faz questão de tocar é sobre o clericalismo. Muito em voga entre nós, sobretudo com o advento dos padres mais jovens. Segundo ele, ao invés de serem “cristológicos” e “eclesiológicos”, a Igreja vive uma experiência controversa, quando os padres, colocam as suas vidas na centralidade e em substituição a proposta de Jesus. Como ele observa, “No lugar da Igreja, colocam-se os seus ministros que, em vez de “servir” a Cristo e à Igreja, se colocam, ao invés disso, “como Cristo e como Igreja”. E assim a ‘autorreferencialidade’ se torna a regra incontornável e até abençoada!”

O grande achado da nossa caminhada de Igreja foi, sem dúvida, o Concílio Vaticano II. Convocado no dia 25 de Dezembro de 1961, pelo saudoso Papa João XXIII. O Concilio foi iniciado pelo papa João e encerrado, no dia 8 de dezembro de 1965, já no papado de Paulo VI. Este documento, abriu novos horizontes para a caminhada da igreja, numa clara tentativa de adaptação ao mundo moderno, através da participação dos leigos no campo político e social. Foi através deste concilio que a Igreja também se abriu às novas realidades, inclusive com adequação a linguagem vernácula e não somente o latim, conforme eram as celebrações pré-conciliares.
De lá para cá, fomos dando corpo às ideias conciliares através das Conferencias Latino-Americanas: I Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Rio de Janeiro, 1955); II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Medellín, 1968); III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Puebla, 1979); IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Santo Domingo, 1992); V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe (Aparecida, 2007).

A Igreja Latino-Americana tem um histórico de caminhada muito bem fundamentada pelas seguidas conferencias. Segundo estas conferências, somos uma Igreja povo de Deus, constituída pelos empobrecidos/esquecidos da história. A nossa eclesiologia e também a cristologia, se fundamentam na caminhada do povo pobre, da mesma forma como fez Jesus, na periferia da Palestina, dando voz e vez aos despossuídos daquele contexto. O padre que se esconde, atrás da sua postura clerical, trancafiado numa sacristia, vivendo numa bela casa e com um carrão na porta, precisa entender que, esta não foi a dinâmica estabelecida por Jesus, quando pensou a sua igreja. Muito menos faz parte da histórica caminhada desta igreja que se encarnou na realidade do povo latino-americano.

Além da falta de compromisso com os empobrecidos, os adeptos do clericalismo, falta-lhes também uma formação mais consistente que os ajude a refletir sobre uma cristologia/eclesiologia mais encarnada na realidade dos pobres. Muitos deles sequer conseguem distinguir o Jesus Histórico do Jesus da fé, o pós-pascal, o Cristo Ressuscitado. Nas suas falas é que acabamos percebendo a fraqueza de seus conteúdos homiléticos. Nada que uma boa leitura e a vontade de mudar não dêem jeito. Mas será que eles querem esta mudança em suas atitudes? Sei não!