Instinto ou sentimento?

De vez em quando, gosto de subverter a ordem das coisas. Hoje, por exemplo, não rezei os textos da liturgia do dia. Ative-me a outra passagem bíblica, como fonte de inspiração para as minhas humildes preces diária. Fui beber da narrativa da comunidade de Marcos, na parte que trata da famosa passagem da “Multiplicação dos pães” (Mc 6, 30-56), realizada pelo nazareno, de quando ainda estava fisicamente com os seus.

Muitos de nós interpretamos erroneamente esta passagem, afirmando que Jesus “dividiu” pães e peixes para uma enorme multidão. Para começo de conversa, um dos aspectos que chama a nossa atenção nesta passagem, é o momento em que os discípulos, tentam tirar o corpo fora, sugerindo que Jesus liberasse a multidão, para que fossem procurar o que comer. E Jesus prontamente diz a eles: “Vocês mesmos é que têm de lhes dar de comer.” (Mc 6, 37) Atitude comum daqueles que não querem se envolver com compromisso algum, em relação aos que estão passando fome.

Claro que Jesus não fez a divisão dos pães e peixes para aqueles que estavam com fome. Se assim o fizesse, não teria alimentado tamanha multidão. O que Jesus fez, foi a partilha dos alimentos, numa clara demonstração de que, se houver a partilha, todos se alimentam e ficam saciados. Ao contrário, se dividirmos o pão, alguns apenas são aqueles que comerão. A grande maioria ficará ainda com fome. É o que ocorre em nossa sociedade. Enquanto alguns poucos têm de sobra em suas mesas, uma parcela enorme da população vai dormir com fome, porque está havendo a terrível concentração do pão.

Só partilha o pão quem é capaz de se fazer irmão. Sentir que o outro está com fome e assim fazer o movimento no sentido de que o pão também chegue até à sua mesa. O pão da igualdade. Esta experiência, nós fazemos nos encontros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Todos trazem os alimentos, que são colocados na mesa da partilha. Esta também deve ser a experiência da EUCARISTIA, memória da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus de Nazaré. Só é capaz de comungar no altar da partilha do PÃO EUCARÍSTICO, quem for capaz também de partilhar o pão, com os famintos no dia a dia. Do contrário, será comungar a própria condenação: “Por isso, todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor”. (1 Cor 11, 27)

Uma das coisas boas dessa nossa igreja da Prelazia é que não temos ministros da eucaristia, que faz a distribuição do Pão aos que desejam comungar. As hóstias ficam sobre o altar. Quem comunga, se dirige até ele e faz a sua própria comunhão. Pedro quis deixar a ideia de que ali está a mesa da partilha. Cada qual vai até lá e comunga das mesmas ideias de Jesus que se fez Pão para muitos, que desejam como ELE ser Pão na vida dos demais irmãos. Esta foi a minha primeira observação positiva que fiz dessa igreja povo de Deus em mutirão.

Ainda continuo impactado pelo depoimento de um dos biólogos que trabalha diretamente no bioma do nosso pantanal. Ele que acompanha e monitora o nascimento e desenvolvimento das araras azuis e dos Tuiuiús, fez uma fala comovente. Num dos ninhos que acompanhava/monitorava, encontrou a mamãe Tuiuiú, morta sobre o ninho. Naquele mesmo ninho havia também um casal de filhotes. Todos carbonizados pelo fogo que havia passado por ali. A mãe, na tentativa de salvar os seus filhotes, morrera ali sobre eles, sem os abandonar. Poderia ter voado, escapando do fogo, mas não o fez, afirmou o biólogo.

Instinto ou sentimento? Fica-nos a eterna dúvida. Afinal, os animais são movidos pelo instinto de preservação da espécie, ou por algum tipo de sentimento que não conhecemos ao certo? Confesso que não tenho tanta certeza quanto a uma definição. O que posso afirmar, é que os animais são bem mais fieis, naquilo que “sentem”, do que nós humanos, muitas vezes. Eles se dão com e pelos seus. A mamãe Tuiuiú deu a vida pelos seus pequenos. Coisas de mãe. É o mesmo o que fez aquele pequeno cãozinho, na porta do hospital, acompanhando a alta hospitalar de seu amigo. Não houve quem o tirasse de cima de seu dono, dentro da ambulância que o levaria para sua casa de volta.

Nós humanos, somos movidos por nossos sentimentos. Sentimentos bem estranhos. Somos capazes de conviver com as maiores aberrações e contradições e mesmo assim tocamos a nossa vida em frente, como se nada estivesse acontecendo ao nosso redor. Centenas de milhares de pessoas estão padecendo pela falta de trabalho, teto, comida, atendimento médico decente e, os do lado de cá, continuamos com a nossa vida de mesa farta e atitudes consumistas. Bem que poderíamos substituir então os nossos sentimentos pelo instituto dos animais. Quem sabe assim fossemos humanos.