A teoria na prática é outra

 

Hoje levantei mais leve. Com um estado de espírito de maior leveza, deixei me conduzir na minha oração matinal, contemplando a debandada das araras, curicas e papagaios, rumo à Ilha do Bananal. Nesta época do ano, todas as manhãs elas praticam este ritual, indo em direção à ilha, retornando ao final do dia, numa verdadeira algazarra. Cada qual falando mais alto o seu dialeto, numa alegria infinda. É a natureza toda em festa com tamanha beleza. No final da tarde, acontece o processo inverso delas retornando, depois de passarem o dia pela Ilha do Bananal. Pena que não dá para registrar aqui as suas farras incontidas.

Trouxe presente comigo na minha oração de hoje o alerta feito por Jesus diante de seus discípulos, no texto do evangelho trazido pela narrativa da comunidade de Mateus (Mt 7,21.24-27), onde está escrito: “Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas o que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus. (Mt 7, 21) Ou seja, não basta dizer que Jesus é o Senhor que estará tudo resolvido, mas é preciso levar a sério a sua Palavra, colocando a em prática no dia a dia, com todas as letras possível. Sem uma interpretação ao pé da letra, claro!

A teoria na prática é outra. Não basta apenas ter o conhecimento desta Palavra, mas o entendimento mais profundo, fazendo a sua interpretação (hermenêutica) correta e fazendo dela um projeto de vida pessoal e comunitário. Desta forma, nem mesmo o ato de fé mais profundo de uma pessoa ou de determinada comunidade, que é o reconhecimento de Jesus como o Senhor, faz com que alguma pessoa dentre nós possa ter o passa-porte para o Reino de Deus. Principalmente se o ato de fé pela Palavra não, vier acompanhado de ações concretas, mas de um ato vazio e sem sentido. Neste sentido, no final de seu evangelho (Mt 25,31-46), ele nos mostra Jesus dando-nos uma dica primordial de como podemos colocar a sua Palavra em prática, mostrando-nos as ações que qualificam o autêntico reconhecimento de Jesus como Senhor.

Rezando e analisando o texto que nos é proposto pela liturgia de hoje, vemos o quão difícil é para cada um de nós colocarmos esta Palavra em prática no cotidiano de nossas vidas. Bem que até tentamos, mas sucumbimos na maioria das vezes que tentamos. Sempre há algo que nos afasta do Projeto de Deus, seja pela nossa desatenção para com as coisas relacionadas a ELE, seja pelos projetos pessoais que colocamos no lugar do Projeto de Deus. Uma coisa é certa, precisamos muito contar com as forças do próprio Deus, para dar cabo à realização da sua vontade em nossas vidas.

Fato é que sozinhos, não iremos a lugar algum. Se formos contar somente com as nossas forças, desanimaremos nos primeiros embates. Isto nos mostra que, tendo a força de Deus em nós, teremos muito mais chances de triunfar diante de seu Projeto de amor. Segundo alguns biblistas, que trabalham na perspectiva de uma linguagem mais encarnada, traduzindo a Palavra de Deus para a linguagem da caminhada do povo simples, quando lemos a Palavra de Deus em comunidade e nos propomos a também caminhar em comunidade, sentimos o Projeto de Deus bem mais próximo de nós. Na perspectiva destes biblistas, como a Palavra de Deus foi escrita em mutirão, é na comunidade que vamos sentir bem mais próximo de nós o Deus que caminha junto ao seu povo. Deus conosco na caminhada de igreja fazendo acontecer o Projeto de Deus revelado em Jesus, rumo a construção do Reino.

Então não tem sentido a oração pessoal/individual entre eu e Deus? Claro que tem! Esta é apenas uma das dimensões da oração que se completa na dimensão comunitária, onde eu encontro o meu irmão, a minha irmã e, com eles, faço a minha caminhada como igreja. Oração alguma tem o poder de isolar-me no meu canto, estando em paz com a minha consciência, me afastando da problemática, dos conflitos presentes na vida das pessoas. A oração serve como um impulso, que nos joga para frente, indo em direção aos mais necessitados, para com eles praticar aquilo que Jesus nos pede que façamos, enquanto seguidores e seguidoras d’ELE. Como resumiu a dona Maria da Paz, uma das lideranças de nossas comunidades: “Na comunidade é nós com Deus; Deus com nós; e nós com nós mesmos.” Pronto!

É preciso aproximar o nosso coração ao coração de Jesus. Ao fazermos este exercício, vamos perceber que não basta ter fé EM Jesus, mas somos desafiados a ter em nós a mesma fé DE Jesus. Se não fizermos desta forma em nosso jeito de rezar, correremos o risco de fazer como aqueles que Jesus abominou dizendo: “Esse povo me honra com os lábios, mas o coração deles está longe de mim.” (Mt 15, 8) Se no seu tempo, Jesus condenou as práticas daqueles que se julgavam acima do bem de do mal, hoje também ELE nos alerta sobre a nossa vivência cristã, que nos apegamos as coisas sem muito sentido e desprezamos a essência da verdadeira prática da fé, frente a Palavra de Deus.