Senhora da libertação

Solenidade da Imaculada Conceição (08). Uma festa que nos remete aos primórdios do Cristianismo. Oportunidade impar para conhecermos mais de perto a História Salvífica de Deus, para a humanidade, com a participação decisiva de pessoas simples, pobres do meio do povo. Esta é também a história desta mulher, que aceita fazer parte deste projeto, e se coloca nas mãos de Deus, para que se cumprisse aquilo que Deus tinha como perspectiva para o seu povo.

Maria é aquela mulher simples. Morava em Nazaré, uma periferia da Palestina. Um lugar desprezível, cuja maioria de seus moradores, era constituída de pagãos. Um povo marginalizado pelo preconceito e a discriminação da época. O próprio evangelista João se refere a este lugar social da seguinte forma: “De Nazaré pode sair coisa boa? Filipe respondeu: Venha, e você verá.” É desta periferia, que Deus faz questão de chamar aquela que irá fazer parte de seu projeto. Mesmo cheia de dúvidas e ainda insegura, ela se coloca à disposição, através da sua frase bastante conhecida de todos nós: “Eu sou a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua vontade/palavra.” (Lc 1,38)

Maria uma mulher obstinada e muito à frente de seu tempo. Com o seu SIM, ela se coloca inteira como protagonista e construtora do Projeto de Deus. Faz de sua vida um lugar de fala, numa sociedade machista e patriarcal. Não como uma mulher passiva e acomodada, como nos foi passado, através de uma Mariologia fundamentalista e cheia de equívocos. Pelo menos, foi esta a catequese que muitos líderes religiosos, seminaristas, padres e até bispos, fizeram através de suas pregações homiléticas, desfigurando completamente a postura revolucionaria desta grande mulher. O mesmo fizeram com Jesus, realçando aquela postura passiva do “Jesus manso e humilde de coração”. Confesso que nunca gostei muito da interpretação que deram ao longo da história deste Jesus desfigurado.

“Eu sou discípulo de um prisioneiro político. Jesus não morreu de hepatite na cama e nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém. Foi preso, torturado e julgado por dois poderes políticos.” Esta é uma frase dita pelo Dominicano Frei Betto, em uma entrevista dada ao médico Dráuzio Varella, num dos seus programas televisivos e que nos dá uma dimensão de quem foi, de fato, este Jesus “manso e humildade de coração”. Um homem também revolucionário que, a exemplo de sua mãe, fez o enfrentamento com os poderosos de seu tempo, pondo o dedo na ferida e dizendo que aquilo não condizia com o sonho de Deus para o seu povo, sobretudo, dos mais pobres e vulneráveis.

É esta mulher forte e destemida, extremamente corajosa que quis rezar hoje, nesta sua solenidade. Para isso, fiz questão de trazer presente a “Oração dos Mártires da Caminhada”. Esta bela oração, que só podia sair mesmo da cabeça de um Pedro Casaldáliga. Num dado momento dela, ele assim reza: “Por Maria, a mãe da testemunha Fiel. E pelo mesmo Jesus Cristo, o Crucificado-Ressuscitado, primogênito vencedor da morte”.

Da mesma forma que precisamos retomar uma Cristologia libertadora, o mesmo precisa também acontecer com uma Mariologia encarnada, que nos coloque em sintonia com estes personagens e as suas histórias revolucionárias de vida. Do contrário, corremos o risco de fazer aquilo que alguns pentecostais ultraconservadores se referem a nós dizendo que praticamos certa “Mariolatria” em relação à Mãe de Jesus, uma vez que eles não concebem a ideia da origem humana de Jesus.

E, para superar esta dimensão de uma “Teologia do senso comum”, em relação a Cristologia e a Mariologia, temos ótimas produções literárias que nos ajudam enormemente. O sacerdote e teólogo espanhol Jon Sobrino, que vive em San Salvador desde 1957, é um dos mais importantes expoentes da Teologia da Libertação. Ele nos mostra, através de seu vasto escrito, uma espiritualidade do seguimento do Jesus histórico, – filho de Deus, mas homem de Nazaré -, como o Servo de Deus profetizado por Isaías no Antigo Testamento e reassumido pela Cristologia da Cruz nos escritos paulinos do Novo Testamento correlacionando-o solidariamente com os povos-crucificados e os profetas-martirizados. Esse mesmo Jesus que nos conclama que, como seguidores e seguidoras suas, a promover no hoje da história o descimento da cruz os pobres, por meio de uma cristologia da libertação.

Espelhado na mãe, que também não arredou o pé da luta, somos interpelados a fazer das nossas vidas, uma luta constante para libertar os cativos de todas as formas de opressão. E olha que não são poucas! Assumamos nas nossas lutas aquilo que ela soube incorporar em si com muita coragem, no seu Magnificat: “Manifesta o poder de seu braço, dispersa os soberbos; derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes; sacia de bens os famintos, despede os ricos sem nada”. (Lc 1, 51-53) Esta era a Senhora da Libertação e não este arremedo que ouvimos por aí, de uma mulher conformada e conformista.