A luta nossa de cada dia

 

Trinta de dezembro. Penúltimo dia do ano de 2020. Ora de fazer um balanço de como tudo chegou até aqui. Arrastado, é verdade. Nunca tínhamos vivido algo tão antagônico. Nunca tivemos a vida tão ameaçada. Juntando a tudo isso, podemos dizer que quem nos (des)governa, não nos representa. Não a mim e a muitos dos meus amigos. Falta tudo: organização, estratégia, plano de governo, vacina, coração, sensibilidade a dor alheia, empatia, afinal.

Ano em que os professores, junto com os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, pessoal do apoio) foram os grandes sacrificados. Conheço professores e professoras que estão doentes, estressados e chegam ao final deste ano, no limite das suas forças. Eles e elas levaram a sala de aula para dentro das suas casas, perdendo completamente a privacidade. Toda hora é hora para atender os alunos, sobretudo aqueles que não dispõem de equipamentos em suas respectivas moradias.

Os professores indígenas nas aldeias estão na mesma situação. Como os alunos não dispõem de computadores e internet em suas casas, eles tiveram que fazer o acompanhamento individualizado de cada aluno em suas casas. Sem estarem devidamente preparado para isso, ou de alguém que os ajudasse nesta difícil tarefa. A cada dia, reservamos as noites para tirarem as dúvidas e planejar a próxima aula do dia seguinte, fazendo uso do wife da escola. Um momento sagrado para eles, mas também de muita angústia. Eu me desdobrando de cá e eles, de lá, fazendo a sua parte.

Ao final de cada ano que se encerra, geralmente reservamos um tempinho para um balanço de tudo o que passamos. Apesar das restrições e das limitações impostas por este clima pandêmico, alguns dentre nós não nos ajudaram, no enfrentamento das dificuldades comuns. Neste sentido, quero registrar aqui a situação vivenciada pelo padre Ticão, da comunidade São Francisco de Assis, de Ermelindo Matarazzo, Zona Leste de São Paulo. Este meu amigo, foi hostilizado e recebeu ameaças de morte por defender o uso medicinal da Cannabis e debater direitos sexuais e direitos reprodutivos na comunidade. O mais estranho é que as ameaças partiram de pessoas de “dentro da própria Igreja”, que se autodenominam Apostolado Templário de Maria. A comadre de Nazaré instrumentalizada para interesses obtusos.

Mas nem tudo é tragédia. Há coisas boas também acontecendo entre nós. Uma delas é a daquele médico, que fora chamado para atender um paciente em estado gravíssimo com Covid-19. Quando lá chegou, percebeu que aquele paciente era um professor de um dos cursinhos em Goiânia, que o ajudara a entrar na Faculdade de medicina. O médico em questão, ajudou a salvar a vida do professor, como forma de gratidão por tê-lo ajudado a ser um profissional de medicina. Gestos que salvam vidas. Retribuição ao que recebera. https://web.whatsapp.com/

Ou também daquele jovem adolescente que, chegando a um supermercado, numa das cidades do interior de São Paulo, viu caída no chão uma nota de 50 Reais. Prontamente a pegou e levou ao dono do supermercado, que encontrou a pessoa que havia deixado cair aquela nota. Isso me fez lembrar de uma frase dita por Charles Chaplin: “A vontade de retribuir vem naturalmente e um pequeno gesto acaba se multiplicando. Quando se planta cuidado, colhe-se gratidão”.

Numa de suas canções, nosso trovador nordestino Zé Vicente, assim se manifesta: “Se é pra ir a luta, eu vou! Se é pra tá presente, eu tô! Pois na vida da gente o que vale é o amor”. Vamos todos à luta! Oportunidade de renovar todas as coisas e, numa atitude de respeito aos mais 200 mil mortos entre nós, não devemos soltar fogos de artifício. Não há o que comemorar diante de tantas pessoas que perderam suas vidas. Os animais também agradecerão. Alem de colocar um pano branco sobre as nossas janelas, a melhor coisa talvez a fazer na virada é rezar. Agradecendo pelo ano que se foi, pelas famílias enlutadas que perderam os seus e reservar um minuto para rezar pedindo a Deus que nos livre desta desgraça que se apossou do poder em nosso país. “É que a gente junto vai. Reabrindo caminhos vai. Alargando a avenida pra festa geral. Enquanto não chega a vitória. A gente refaz a história. Pro que há de ser afinal. Lauê, lauê, lauê, lauê” (O Que Vale É o Amor – Zé Vicente).