O Martírio nosso de cada dia

Uma sexta-feira (12) chuvosa sobre o Baixo Araguaia. A semana encaminhando para o seu final. O dia de hoje é um daqueles para nunca ser esquecido do nosso calendário de lutas. No dia de hoje, há 16 anos (2005), era assassinada, no município de Anapu, a missionária Dorothy Stang, com seis tiros à queima-roupa. Esta guerreira integrava a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e era uma das lutadoras em defesa dos trabalhadores e trabalhadoras do Pará e da região Amazônica. Conheci a irmã Dorothy alguns anos atrás e fiquei impressionado com a sua baixa estatura, mas de uma fibra e tenacidade invejáveis. Só podia ser uma mulher de Deus!

Dias de luto também para a população A’uwé (Xavante). Nessa quarta-feira (10), faleceu o casal indígena Juliana e Roque Teromnhi Eiwe, mais conhecido como professor Roque Xavante, de 57 anos. Ambos, vítimas de complicações da Covid-19. Roque era um dos professores indígenas do Território de São Marcos. O casal sempre esteve presente no Museu de História Natural de Mato Grosso, contribuindo com o acervo e a história dos povos indígenas no Estado. Estavam abatidos pela morte de um dos seus filhos, em consequência de complicações com a diabetes. Em sinal de luto, todos da sua família e os parentes mais próximos raspam a cabeça.

Estamos celebrando o martírio da nossa irmã Dorothy. Ela que deu a sua vida pela causa dos trabalhares e trabalhadoras da nossa Região Amazônica. O que fizeram com esta mulher, foi de uma covardia e maldade desqualificadas. Uma pessoa aparentemente tão frágil como também eram Francisco de Assis, nosso bispo Pedro e o próprio dom Hélder Câmara. Assassinaram-na com requinte de crueldade, e a deixaram sangrando estendida pelo chão daquela terra, pela qual ela sempre lutou sem temor algum. Sobre o corpo dela, ficaram as marcas das digitais dos poderosos latifundiários de nossa região.

Nosso bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia Pedro sentiu por demais a morte da irmã Dorothy. Todos nós sentimos muito. Na ocasião de sua morte, Pedro fez uma homenagem a ela, recitando um de seus poemas que tem tudo a ver: “Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos, para ampararem cercas e bois e fazerem da terra escrava e escravos os homens!” (Pedro Casaldáliga – bispo, poeta e profeta do Araguaia)

A morte de Dorothy veio evidenciar para nós em que tipo de sociedade estamos vivendo. Somos um país com uma das maiores concentrações de rendas/riquezas do planeta. De saber que 1% apenas, detém em suas mãos, cerca de 49% de todo o território nacional. É muita contradição. Também vivemos num tipo de sociedade em que as mulheres seguem sendo crucificadas e assassinadas ao longo da nossa história. Em plena pandemia, estamos convivendo com dados alarmantes de crimes contra as mulheres. Um país cuja misoginia, ou seja, um sentimento de aversão, repulsa e desprezo mortais pelas mulheres e a todos os valores femininos é latente.

Basta vermos o que vem acontecendo com a nossa pastora luterana Romi Bencke, que vêm sendo difamada nas redes sociais por grupos neoconservadores católicos. Uma verdadeira cruzada contra a mulher, só pelo fato dela ser feminista e defender as suas posições na defesa das mulheres. As redes sociais estão recheadas de ameaças a pastora. Pessoas que se dizem cristãs, seguidoras de Jesus de Nazaré. A que ponto chegamos!

O martírio é um dos sinais de pertencimento a esta Igreja de Jesus de Nazaré. O próprio Jesus foi martirizado na cruz, por ser coerente e fiel ao Projeto de Deus. Desde os primórdios, já nas primeiras comunidades cristãs, as pessoas conheceram de perto o martírio e assumiram seus ideais, no seguimento de Jesus, mesmo que isso lhes custasse à própria vida e sofrimentos. Estes mártires não arredavam o pé e até se fortaleciam em dignidade diante dos insultos, blasfêmias e maus-tratos sofridos. Neste sentido, Pedro tinha uma tática que eu achava o máximo. Ele raramente respondia aos que lhe atacavam ou o perseguiam. Segundo ele, ao responder, em muitos casos, estaria dando ibope àqueles que se contrapunham a ele. Conheci um destes que ficava irado, pelo fato do bispo não responder às suas provocações.

Certo é que estamos na mesma caminhada com Jesus. E não é nada fácil ser fiel e coerente ao projeto que ELE veio nos trazer. Caminhar com Jesus e fazer parte da sua Igreja, é estar disposto a dar a vida em nome do Evangelho, pela causa dos pequeninos. Nosso maior modelo é Jesus de Nazaré, que “fazia bem todas as coisas” (Mc 7,37), como o vemos no final do Evangelho de Hoje. Ademais, como nos dizia Santo Oscar Romeiro. “Em um país de injustiças, se a Igreja não é perseguida, é porque é conivente com a injustiça”.