O jejum da coerência

 

Primeira sexta-feira (19) da quaresma. Neste período especifico, somos desafiados a viver o tripé: caridade, oração e o jejum. Três dimensões essenciais para a nossa vivência cristã nesta nossa caminhada, rumo as Páscoa do Ressuscitado. Uma longa travessia que iremos percorrer, até nos encontrarmos com Jesus Ressurreto. Quanto à oração, nós até tiramos de letra, mas quando chega naquela parte que diz respeito à caridade e no jejum, nos perdemos um pouco, de como fazê-los na perspectiva de uma coerência maior.

Exercer a caridade, não é desfazer daquilo que não utilizo mais e dar ao primeiro necessitado que aparecer à minha frente. Aliás, houve um desgaste desta palavra ao longo dos anos, tanto que não sabemos exatamente como praticá-la, de tal maneira que possamos ajudar os mais necessitados. Talvez a palavra que mais se encaixa neste contexto seja a palavra solidariedade, quando movidos pelo espírito de compaixão, vamos até o outro que está passando por necessidade e o ajudamos de fato.

Já o jejum, é algo que exige muito mais de nós, num mundo abastado para alguns e carência demais para outros. Isto porque, vivemos numa sociedade desigual, quando os filhos e filhas de Deus passam privações básicas para terem o necessário para uma vida com dignidade. A nossa situação é tão caótica, que somos capazes de vivenciar este contexto no dia a dia, e o relativarmos, naturalizando-o como se fossem coisas normais. A dor e o sofrimento do outro não me toca e muitas vezes até agimos com preconceito para com aqueles que estão passando por tais situações.

Estou vivendo uma sexta feira muito triste. O vírus segue fazendo vítimas entre os povos indígenas. Ontem perdemos duas vidas entre o Povo Iny (Karajá) Os Aruanãs estão de luto, chorando a morte de seus filhos. Primeiro foi Hacari Maluá Karajá, de 55 anos de idade. Uma grande liderança indígena, servidor da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Hacari disputou as ultimas eleições em São Félix do Araguaia para o cargo de vereador. Logo mais a noite, recebemos a notícia da morte da Técnica de enfermagem Cristina Malawiru Jijuke, que atuava na linha de frente com os seus, da aldeia de Aruanã. Jovem, linda e extremamente dedicada ao serviço da saúde de seu povo. Duas vidas imprescindíveis para o povo Iny. Quanta tristeza, Senhor!

Qual é o jejum que agrada a Deus? Como fazer jejum em meio a tantas contradições? Como falar de jejum num país que passa fome? Como pedir que pessoas que estão privadas sem ter o que comer, façam ainda o seu jejum neste período quaresmal? Só recorrendo mesmo ao profeta Isaías. Ele que viveu no século VIII a.C, e exerceu o seu profetismo por quarenta anos, escreveu em seu livro esta dica, que serve muito bem para exemplificarmos qual a visão que Deus tem sobre o jejum. “O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente.” (Isaías 58, 6-7)

Segundo a concepção do profeta Isaías, parece que o nosso jejum está mesmo muito distante daquele jejum que agrada a Deus. Não é qualquer jejum que o agrada. Neste sentido, para sermos mais coerentes com a vivência cristã da nossa fé, precisamos ajustar as nossas condutas, em meio aos famintos que há entre nós. O jejum tem tudo a ver com a realidade social que nos cerca. Não se trata tão somente de privar de um tipo de alimentação, como alguns chegam a pensar, mas saber se esta minha prática do jejum vem em direção àquilo de que aponta o profeta. Padre Zezinho, numa de suas últimas canções, que mais parece um mantra, sugere-nos um contexto bastante real para pensarmos o nosso Jejum.

O salmo 50 da liturgia de hoje nos coloca em sintonia com o Deus misericordioso de que tanto nos falou Jesus. “Tende piedade, ó meu Deus, misericórdia! Na imensidão de vosso amor, purificai-me! Lavai-me todo inteiro do pecado, e apagai completamente a minha culpa!” Neste clima penitencial, suplicamos ao Senhor que nos ajude a fazer o nosso jejum que o agrada: cuidar dos que estão necessitando; acolher os sofredores; agir com misericórdia, sobretudo para com àqueles que vem até nós; amar sem limites; promover a justiça do Reino; dizer palavras de conforto a quem se encontra no desespero; animar os desanimados; não pagar com a mesma moeda aos que nos ofendem; ser misericordioso assim como Deus sempre age conosco. Que façamos da nossa vida a “Oração de São Francisco de Assis como projeto de vida