Iniciando mais uma semana. Uma segundona que, manhosamente, vai dando as suas coordenadas rompendo o dia. Mais um recomeço nada agradável de viver, uma vez que a pandemia é que comanda as ações por aqui: distanciamento, uso de máscaras, não aglomeração, vacinação. Todo cuidado é pouco, pelo menos é o que nos recomendam os infectologistas, sanitaristas e biólogos. Eles sabem o que dizem diante de um vírus que não está para brincadeiras, afinal já são quase 280 mil vidas que se perderam. Muitas delas evitáveis, é verdade!.
Mesmo com todas as recomendações, alguns dentre nós, seguem como se não estivéssemos no epicentro de uma pandemia, com várias cepas do vírus circulando entre nós. Foi o que aconteceu, por exemplo, neste final de semana (14) na Avenida Paulista, na capital paulistana. Vários cidadãos e cidadãs de bem, “cheios de razão” ali estavam em apoio à política necrófila genocida. Muitos destes, sem o uso de máscaras, aproveitaram do ensejo para também protestarem contra o Supremo Tribunal Federal (STF), governadores e as medidas restritivas de combate à Covid-19.
É impressionante como tais pessoas já não se assustam mais com a morte. Numa facilidade enorme de naturalizar a morte prematura de tantas pessoas, sendo que muitas destas vidas que nos foram tiradas, bem que poderiam ter sido evitadas, se houvesse um planejamento sério, para o enfrentamento da pandemia. Enquanto o mandatário maior da Republica, tripudia sobre a dor das famílias enlutadas, ainda assim há pessoas insensatas que entendem que isso é normal, hipotecando seu apoio a tamanho genocídio. Eu não tenho dúvidas de que cada uma daquelas pessoas que ali estavam, traziam em suas mãos o sangue de muitos inocentes que perderam as suas vidas: pobres, favelados, quilombolas, indígenas.
Vendo aquelas manifestações, veio-me à mente o grande educador Paulo Freire. Como eu gostaria que aquelas pessoas fossem alfabetizadas na linha proposta pelo nosso pedagogo mundialmente conhecido! Se ao menos eles fossem capazes de ler o mundo, como propunha Freire, penso que jamais poriam os seus pés naquele tipo de manifestação. Mas aí seria pedir demais, para quem aprendeu a olhar o mundo apenas pela sua míope visão que não vai além de seus próprios narizes. Sem nos esquecer que, a cabeça pensa, a partir de onde os pés estão pisando. Com os pés fincados no lamaçal podre da elite burguesa, só podiam mesmo estar do lado de lá.
Evidentemente que ali também estavam aqueles pobres que pensam com a cabeça de rico. Pobre que odeia pobre, como o faz esta mesma elite. Ambos destilando ódio por todos os poros. Freire nos assegurava que no interior do oprimido dormita um opressorzinho, pronto a sair à luz do dia. Assim se compreende melhor tamanho ódio, advindos da elite, e aqueles que acham que fazem parte dela, quanto ao pensamento de Freire. Segundo a sua visão, não há possibilidade de dialogo numa sociedade de classes, dividida entre oprimidos e opressores. “Há apenas um pseudodiálogo, utopia romântica quando parte do oprimido e ardil astuto quando parte do opressor. Numa sociedade dividida em classes antagônicas não há condições para uma pedagogia dialogal. O diálogo pode estabelecer-se talvez no interior da escola, da sala de aula, em pequenos grupos, mas nunca na sociedade global. Dentro de uma visão macro-educacional, onde a ação pedagógica não se limita à escola, a organização da sociedade é também tarefa do educador. E, para isso, seu método, sua estratégia, é muito mais a desobediência, o conflito e a suspeita do que o diálogo.”
Ler o mundo para se perceber as contradições que nele há. Ler o Brasil a partir da ótica de Paulo Freire, para ver que somos uma grande nação, marcada pelos reflexos da Casa Grande e dos 300 anos de escravização do nosso povo, que perpetuam nas nossas relações ainda hoje. Situação esta que não é capaz de ser vista por aqueles que se fecham à possibilidade de adquirirem um pensamento crítico da realidade. Também por aqueles que estão presentes dentro da nossa Igreja, que vivem no seu mundinho alienado e os seus eternos louvores ao “Senhor Jesus”. Sobre estes bem o disse Santo Oscar Romeiro: “Uma religião de missa dominical, mas de semanas injustas não agrada ao Deus da vida. Uma religião de muita reza, mas de hipocrisias no coração não é cristã”. Depois de uma boa leitura do mundo à luz da ótica freiriana, somos desafiados a fazer aquilo que François Rabelais nos alertara: “Conheço muitos que não puderam, quando deviam, porque não quiseram quando podiam”.