Sob o estigma da Fidelidade

 

Terça-feira (30) da semana santa. Estamos caminhando a passos lentos rumo à Páscoa do Ressuscitado. É para lá que estabelecemos o nosso horizonte possível. Durante o período da semana santa, somos provocados a mirar na cruz de Jesus. Ela é o paradigma que nos direciona para a Redenção, como horizonte utópico da nossa fé. Todavia, não basta ter somente os olhos na cruz de Jesus. Precisamos fazer a transposição para a realidade, dos que ainda hoje, continuam sendo crucificados. Precisamos descê-los da cruz, como dizia nosso bispo Pedro, numa alusão ao teólogo jesuíta Inácio Illacuria que dizia em seu livro “Descer os crucificados da cruz”. Segundo este teólogo, “somos um povo de crucificados, moramos no Sul do Mundo. Nesse nosso Continente de esperança, a miséria de muitos, visível a olho nu ainda é desconhecida ou finge não ser vista”.

São muitos os crucificados de hoje: aquelas pessoas que estão morrendo por falta da devida assistência medica; os que ainda não fomos vacinados; os que estão passando fome; os que estão desempregados; os que estão em situação de rua; os indígenas com suas terras invadidas; os profissionais de saúde, exaustos na linha de frente; os profissionais da limpeza pública, correndo riscos permanentemente; os profissionais da educação. Viver coerentemente a semana santa é mirar em Jesus e voltar os olhos para esta realidade que requer de cada um de nós, uma postura de compromisso, solidariedade e compaixão.

Durante a quaresma e também na semana santa, temos o hábito da prática do jejum. Se bem que fica difícil falar em jejum em tempos de tantas privações a que os pobres estão passando e ainda ter ânimo para jejuar. Talvez o jejum de hoje fosse sob outra perspectiva. Bem naquela linha que nos alertava o profeta Isaías, quanto ao jejum que agradava a Deus: “O jejum que eu quero é que soltem aqueles que foram presos injustamente, que tirem de cima deles o peso que os faz sofrer, que ponham em liberdade os que estão sendo oprimidos, que acabem com todo tipo de escravidão. Que vocês repartam a sua comida com os famintos, que recebam em casa os pobres que estão desabrigados, que dêem roupas aos que não têm”. (Is 58, 6-7)

Uma boa dica de como contextualizar o jejum para os dias de atuais. Neste sentido vale também para aqueles que ontem foram às redes sociais para nos propor o jejum. Juntamente com alguns pastores neo pentecostais, sugeriram-nos a prática do jejum. Parafraseando o profeta, aqui vai uma versão do jejum que agradaria muito a Deus no momento: abandonar a política necrófila do, quanto mais mortes melhor; ter um plano estratégico para o enfrentamento da crise sanitária; desfazer-se das ideias negacionistas, contrárias ao conhecimento racional científico; distribuir um auxílio emergencial justo, que dê conta dos pobres e vulneráveis sobreviverem nesta travessia; respeitar os agentes públicos sérios que estão fazendo a sua parte na pandemia; valorizar os profissionais de saúde que estão na linha de frente, correndo riscos para si e às suas famílias; fazer a aquisição da vacina para todos; sentar na cadeira e governar como alguém digno para o cargo a que foi eleito.

O grande paradigma para a vivência da fé cristã diz respeito à questão da fidelidade às mesmas causas de Jesus. Ser cristão, não basta defender os dogmas, preceitos e um corolário de regras morais. É preciso ir mais além, e colocar-se na mesma dinâmica de Jesus e fazer com Ele, a caminhada rumo à concretização do Reino sonhado por Deus. Entramos em sintonia com o Projeto de Deus através dos relatos bíblicos. Hoje, por exemplo, Jesus está fazendo o anúncio dos dias difíceis que terá pela frente, no enfrentamento de sua paixão, morte e ressurreição. Como se tratasse de pessoas humanas, eles e nós, temos as nossas limitações e fraquezas. Lá como cá, também temos as nossas infidelidades costumeiras, dando maior evidencia aos nossos projetos pessoais, em detrimento do projeto maior de Deus. Um que o trai, a serviço dos poderosos. Outro que nega conhecê-lo. Outro que só acreditaria se visse com seus próprios olhos. Nós também não estamos distantes disso, apesar de afirmar com todas as letras que estamos com Jesus. Será?

Diante de um contexto tão tenebroso que vivemos, esta semana santa veio em boa hora para nos fazer pensar. Através das narrativas bíblicas, próprias da semana santa, vamos nos reabastecendo e fortalecendo a nossa fé. A angústia, por vezes, nos deprime e nos deixa num beco sem saída. Nestas horas sintamos irmanados com Jesus e a dor de uma longa noite da paixão, para se chegar a Glória vitoriosa da Ressurreição. Solidários na dor de Jesus e também nas dores de toda a humanidade. Se achamos que, ficar em casa, nos angustia ao ponto de estarmos no limite, pense naqueles e naquelas que não estão nas suas casas, mas nas filas quilométricas das vagas das UTIs, ou morrendo pelas ruas das cidades, sem terem para onde ir. Além do mais, nunca se esqueça de que a fidelidade é uma questão de decisão e vontade. “Tudo posso naquele que me fortalece”. (Fil 4, 13)