Paz inquietante

Quinta feira da oitava da páscoa. Vamos driblando a pandemia do jeito que dá, vivendo as contradições de cada dia. Uma destas contradições está sendo manifesta na Suprema Corte do país (STF). Os ministros se reuniram para julgar se abre ou não os templos para que as pessoas manifestarem a sua fé de forma presencial em cada uma das igrejas espalhadas por este Brasil afora. A questão central nem é a liberdade para se reunir nos templos, mas a defasagem de rendimento dos cofres destas igrejas, ocasionados pela não presença dos fieis neste período da pandemia. E viva a “teologia da prosperidade”! Prosperidade para os pastores e acirramento da pobreza dos dizimistas.

Esta pandemia do novo Coronavírus trouxe-nos uma série de contradições. Uma delas e talvez a mais gritante é aquela que tem ganhado a mídia nos últimos dias. Segundo a revista estadunidense de negócios e economia Forbes, em plena pandemia, o Brasil ganhou 11 novos bilionários. Ficamos nos perguntando: como pode isto acontecer, num país que mais da metade de sua população não tem garantida em sua mesa a comida para os seus a cada dia que passa? Não temos apenas uma doença que está tirando a vida dos pobres, mas temos também um povo que está passando fome. Como aquela mãe que cuida sozinha de seus três filhos. Não tendo o que dar-lhes de comer, os solta na rua para pedir comida às pessoas.

Esse é o nosso Brasil atual. Um país que possui uma das maiores concentrações de riqueza nas mãos de poucos do mundo. Pessoas estas que não estão nem ai para a “hora do Brasil”, daqueles que não tem emprego, renda e comida na mesa. Como falar de paz para esta gente? Como dizer-lhes: “Ide em paz e que o Senhor os acompanhe! Em contexto mais ou menos parecido, Jesus ordena aos seus discípulos: “Vocês é que têm de lhes dar de comer”. (Mt 14,16) Não somente atuar para prover o alimento necessário, mas fazer da própria vida um alimento constante da causa dos pequenos.

Jesus hoje está falando de paz para os seus. Ainda num clima de velório e muito medo por parte daqueles homens. Eles ainda não haviam revestidos da mesma coragem e determinação das mulheres, que foram à luta e não se deixaram vencer pelo medo. O medo intimida a ação, bem o sabemos. Todavia, como falar de paz para quem está passando fome? Como falar de paz para quem está vendo os seus, morrerem nas filas das vagas de UTI nos hospitais? Como falar de paz para quem ainda chora a morte de seus entes queridos?

Paz que é fruto da justiça. Pelo menos é assim que os documentos da Igreja nos asseguram. Neste sentido, a Doutrina Social da Igreja é bastante clara: não pode haver paz numa sociedade injusta e desigual. Numa alusão ao profeta Isaías: “A paz é fruto da justiça”. (Is 32,17). Este foi inclusive um dos temas da Campanha da Fraternidade de 2009. Paz que se fundamenta na esperança de um mundo novo onde reine a justiça e o direito que geram paz e a prosperidade para os pequenos. Paz que Pedro a manifestou assim em um de seus poemas: “A PAZ do pão da fome de justiça, A PAZ da liberdade conquistada, A PAZ que se faz “nossa” Sem cercas nem fronteiras, Que é tanto “Shalom” como “Salam”, Perdão, retorno, abraço… (A Paz Inquieta (Pedro Casaldáliga) 

Jesus sente a necessidade de falar de paz para os seus. Eles ainda não acreditaram na Ressurreição de Jesus e eram dominados pelo medo. Todavia, a Ressurreição também pode ser fruto da imaginação dos discípulos, nem se reduz a um fenômeno puramente espiritual. A Ressurreição deve ser um fato que atinge a pessoa por inteiro, que vê na pessoa do Cristo Ressuscitado aquele Jesus de Nazaré que conviveu com eles. Só é capaz de identificar o Cristo Ressuscitado, quem olha para Jesus e vê a sua identificação com os pequenos, nas suas ações concretas. Olhar para Jesus Resuscitado é olhar ao mesmo tempo para os corpos oprimidos, doentes, torturados, famintos e sedentos, não é apenas obra de misericórdia, mas é sinal concreto do fato central da fé cristã: a Ressurreição do próprio Jesus de Nazaré.

Aí sim podemos falar de paz. Ser construtores da paz com justiça. Uma paz concreta que brota das ações cotidianas que praticamos em beneficio destes sofredores. Etimologicamente falando, a palavra para designar a Paz é “shalom”, que é um termo hebraico para “paz”. No Antigo Testamento, esta palavra queria significar, basicamente, ser justo, por meio da saúde de qualidade, prosperidade na vida, bem-estar social geral e, enfim, manter um bom relacionamento entre a pessoa e o próprio Deus. São as condições necessárias imprescindíveis para que cada pessoa pudesse ter a sua vida assegurada por alguns direitos básicos, que são inerentes ao ser humano.

Cabe a cada um de nós lutar pela paz. Não a paz idealizada, romântica, mas a paz realista, que brota de relações de amorosidade e compromisso de uma vida melhor para todos. Esta é a paz que precisa acontecer entre nós, com a participação de cada um, na construção de uma sociedade mais justa, solidária e fraterna. Não precisamos de armas e nem de arminhas. As nossas armas são a nossa vontade de lutar e de colocar a vida como instrumento de transformação.