Agir com misericórdia

Iniciando mais uma semana. Uma segunda feira que nos traz notícias nada animadoras. São Félix do Araguaia perde mais uma vida para este vírus cruel. O professor Leonor, nos deixou esta noite. Depois de vários dias de internação em Cuiabá, não resistiu. Um professor de Educação Física cheio de vida, sem nenhuma doença preexistente, com apenas 47 anos de vida. Era uma alegria em pessoa. Sorriso largo. Não havia tempo ruim para ele. Gente boníssima. Uma pessoa de quem todos gostavam. Que falta já está fazendo entre nós.

Rezei nesta manhã num misto de tristeza, melancolia e esperança. Afinal, apesar da dor, ainda estamos no clima de páscoa. Neste sentido, é preciso fazer ressoar em nós a misericórdia de Deus. Aliás, o domingo de ontem é tido pela Igreja como o dia da misericórdia. Este sentimento de compaixão, despertado pela dor do outro, pela sua situação de sofrimento. Misericórdia que tem a sua origem no latim, juntando duas outras palavras: miserere (ter compaixão), e cordis (coração). Sentir a dor alheia com o coração aberto, numa atitude solidária com aquilo que o outro está vivenciando. Mas para viver desta forma, precisamos revestir-nos de benevolência, empatia, perdão, bondade, espelhando em nós a face de um Deus que é misericórdia por excelência.

A mesma misericórdia que faltou a um determinado padre do interior paulista. Revoltado por não poder abrir as portas da “sua” igreja para as celebrações presenciais, em função das medidas restritivas que limitam a entrada nos templos, declinou uma série de adjetivos malévolos contra aqueles que, segundo ele eram os vagabundos esquerdistas, comunistas. Numa clara demonstração de desequilíbrio e falta de informação, uma vez que todos aqueles que pensam diferente de si, se enquadram sem seus impropérios, destituídos de razão. Esta “sua” igreja pode ser tudo, menos a igreja do Mestre Jesus de Nazaré.

Misericórdia que, sem dúvida, sobrou na atitude de outro padre. Este sim, um servo de Deus. Padre Paulo Sousa, da paróquia Imaculada Conceição, em Aquidauana/MS, tratou de substituir as pessoas das celebrações presenciais por cesta básicas, colocadas estrategicamente nos bancos da igreja. Numa demonstração clara de solidariedade das pessoas que doaram 130 cestas básicas. Alimentos para ajudar as famílias que estão em quarentena por conta da pandemia do Coronavírus. Ao invés de ficar lamuriando e xingando as autoridades, a exemplo das primeiras comunidades cristas, tratou de expressar em gestos concretos a impossibilidade de reunir as pessoas nos cultos.

Quando falta a misericórdia, sobra destempero e descompromisso com a realidade daqueles que mais estão sofrendo nesta pandemia. Há muitas pessoas passando por sérias dificuldades. A fome chegou e se instalou entre a população mais vulnerável. Fome de não ter o que comer e sem saber quando terão, de tantas incertezas que estamos vivendo. Misericórdia, portanto, é a palavra de ordem da vez entre nós. Neste sentido Jesus foi categórico ao afirmar para os seus discípulos: “Quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 12, 7). Este foi o desejo explicito de Jesus, independente da situação vivida pelas pessoas.

Vivemos hoje numa sociedade marcada pela indiferença e pelo individualismo. Onde predomina atitudes como estas, dificilmente haverá espaço para vivência concreta do amor. Numa sociedade tão desigual, onde alguns poucos têm tudo, e a imensa maioria nada tem, não há amor que sobreviva nestas condições. Para que o amor possa ganhar estes espaços, precisamos, antes de qualquer coisa, superar esta contradição da desigualdade, proveniente da alta concentração da riqueza nas mãos de alguns poucos. Assim, ser cristão neste contexto é preciso encher-se de indignação e lutar, para superar esta desigualdade tão desumana. Onde há desigualdade, Deus aí não pode estar!

Jesus, por outro lado, nos propõe a vivência da misericórdia. Aliás, Ele veio nos revelar a face de um Deus extremamente misericordioso. Um Deus que não está nas alturas, como nos é proposto pelo chavão esquizofrênico, mas no meio de nós. Misericórdia esta que é um sentimento movido pela compaixão, que é despertada pela desgraça ou pela miséria do outro. Ser misericordioso significa agir pelas coordenadas do coração e deixar ser invadido pela dor dos que sofrem. Não porque o outro seja bom, mas porque ele está necessitado de ajuda. Ele precisa. Quem se move pela misericórdia jamais poderá pronunciar uma das frases ditas, inclusive por pessoas de dentro da própria Igreja: “Quem tem dó do miserável que fique no lugar dele”, numa atitude de total indiferença e desprezo pela causa do outro.