Religião libertadora

Quarta feira da terceira semana da páscoa. Uma espada de dor transpassou o meu coração assim que este dia começou. Já pela manhã, recebi o áudio do meu amigo Roberto, dando-me conta que sua esposa, Peninha não resistiu à Covid-19. Mais uma vida tirada do meio de nós. Peninha que venceu tantas outras batalhas, atuando como liderança à frente da caminhada de sua comunidade católica, fez a sua páscoa nesta noite. A estas horas já ouviu do próprio Jesus: “Vinde, bendita de meu Pai, recebei por herança o Reino que meu Pai preparou desde a criação do mundo”. (Mt 25,34) Não tenho dúvidas de que Peninha está deitada no colo de Deus, sendo acariciada por tanto sofrimento passado com esta maldita doença.

Peninha sempre acreditou na caminhada da comunidade. Deu a sua vida pelas mesmas causas de Jesus. Acreditava numa religião libertadora e não naquela que faz questão de alienar as pessoas, seguindo um Jesus distante da realidade dos pequenos. Ao contrário, fez da sua caminhada peregrina nesta terra, um serviço abnegado às pessoas mais pobres, construindo o Reino do qual falou Jesus insistentemente. Ainda me lembro dela, toda entusiasmada, no trabalho vocacional que fizemos por ocasião de minha ordenação sacerdotal. Como diz o padre Zezinho em uma de suas canções, Peninha vivia a sua espiritualidade, através de uma religião libertadora.

Rezei esta manhã com esta grande amiga, mesmo ainda sem saber que já estava nos braços do Pai. É assim que temos vivido estes últimos dias. Vidas que se perdem! A cada dia, perdemos amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos, distantes e também de muito perto de nós. Não sabemos ainda até onde iremos com tantas mortes. Todavia, esta pandemia tem nos ajudado a distinguir as várias facetas da religião vividas no meio de nós. Desde aquelas muito próximas do Projeto de Deus, como aquelas, cada vez mais distantes daquilo que anunciou o Nazareno. São tantos os que se colocam como seguidores de Jesus, mas a sua fala e, sobretudo, a sua prática, os coloca a quilômetros de distância dos anseios de Deus em Jesus de Nazaré.

Por estes dias mesmo, está circulando pelas redes sociais um vídeo em que estes ditos seguidores de Jesus, estão rezando, com Maria, contra os males do comunismo. Acredito que nem eles mesmos têm noção exata do que vem a ser este tal de comunismo. Se lutar por direitos dos mais pobres, moradia, saúde emprego, comida, vacina, é ser comunista, este que agora vos escreve é um comunista inveterado desde pequeno. Nestas horas, estou com o Papa Francisco: “ter uma preocupação com os pobres não é ser comunista, mas, sim, a premissa autentica da fé cristã, é Evangelho”.

Na liturgia de hoje, Jesus se coloca como o “Pão da vida” (Jo 6,35). Exatamente aquele que se apresenta como alguém que veio de Deus para dar a vida definitiva as pessoas como a Peninha, por exemplo. Entretanto, os próprios conterrâneos de Jesus não admitem que um homem, do meio deles, possa ter esta origem divina e, portanto, possa dar a vida definitiva. A desconfiança começa pelos próprios pobres da Galileia, que duvidavam desta origem divina de Jesus e se estende até as principais lideranças religiosas de Jerusalém. Apesar de toda a humanidade presente em Jesus, na sua entrega ao Plano de Deus e na defesa dos pequenos, mesmo assim, os seus não acreditaram inicialmente. Um Jesus extremamente humano. “Tão humano assim, que só podia ser mesmo divino”, afirma o teólogo Leonardo Boff.

A nossa vida neste mundo é passageira. Todos e todas estamos aqui de passagem. Uns abreviando a sua estada entre nós, em decorrência desta doença traiçoeira. Quantos sonhos, desejos, projetos, histórias de vida, deixaram de existir. Claro que Deus não quer que as vidas sejam abreviadas, já que nos criou para a vivermos em plenitude. Ansiamos pelo dia em que estaremos juntos de Deus, mas vamos prolongando o máximo que podemos. A morte é certa, e vamos um dia encontrar com ela, mas adiamos o máximo que podemos. Sabemos que Deus nos preparou uma vida definitiva. E esta vida está justamente na condição humana de Jesus (carne). Ele é o Filho de Deus que se encarnou em nossa realidade humana para dar vida às pessoas. Esta vida definitiva começa quando nos comprometemos com Jesus e aceitarmos a própria condição humana, vivendo em favor dos outros, como fez minha amiga Peninha. Ela que assumiu um compromisso com Jesus, dando a própria vida em favor dos outros. Amar, mais do que um sentimento, é comprometer-se. Amar é ser imprescindível na vida das pessoas, quando não se está mais presente nelas. Que saibamos amar como Jesus amou, dando-se por nós, até as últimas consequências.