Jesus e as serpentes

 

Sexta feira da terceira semana da páscoa. Iniciei o meu dia em estado de graça. Entrei na fila da vacina ontem e recebi a primeira dose da Astrazeneca. Ao contrário do que me disseram, não apresentei nenhuma reação adversa. Confesso que, quando recebi a picada, fiquei tão emocionado que tremia dos pés a cabeça. Todavia, não podia deixar passar em branco este momento tão esperado. Fiz um discurso acalorado, enaltecendo a ciência, o SUS e os profissionais de saúde, pelo seu trabalho grandioso, e um maiúsculo Fora genocida! As meninas da saúde até pararam para ouvir-me. “Só podia mesmo ser um prelazia”, afirmaram elas.

Foi neste estado de graça que rezei hoje a liturgia do dia. Primeiro tentei fazer um acordo com abelhas, marimbondos e passarinhos, para ver se conseguiria colher algumas jabuticabas. São muitas sobre o pé, mas todo meu esforço foi em vão. Os marimbondos mal humorados, nem sequer deram atenção para mim. E são daqueles enormes, que uma de suas picadas, causa febre sobre o freguês da vez. Pensa na festa dos pássaros, sugando este fruto doce do meu quintal.

A terra nos surpreende com aquilo que ela é capaz de nos prover a cada dia. O milagre da semente semeada ao chão produz frutos diversos e surpreendentes. Aliás, foi desta forma que, no início da colonização, Pero Vaz de caminha descreveu-a em um de seus escritos ao rei de Portugal, no qual descrevia o Brasil: ”A terra em si é de muito bons ares […]. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dá-se nela tudo”. Foi através deste seu escrito que surgiu posteriormente a expressão ”Em se plantando tudo dá”.

Melhor fazem os povos indígenas, na sua relação harmoniosa e respeitosa com a terra. Há uma sintonia perfeita entre eles e a terra. Não se separa um do outro. Sincronia total. Lembro-me da primeira vez que um dos pajés Xavante me levou para conhecer a floresta. Lá pelas tantas, depois de descrever cada detalhe daquele espaço, me pergunta ele: “você está escutando o som da floresta? Você percebe que ela está respirando?” Inicialmente, disse que não. Foi quando ele completou o seu raciocínio: “no dia em que você conseguir escutar o som da floresta e perceber que ela respira, a sua vida será bem melhor. Você conseguirá sentir que ela pulsa dentro de seu coração”. Pensei comigo: esse cara é tido como um “silvícola”. Quanto saber acumulado!

Como os indígenas, é preciso pensar a terra de forma carinhosa. Dela também brota a sabedoria de Deus! Dela emana o sopro divino da criação (Ruah). Tudo de que necessitamos advém dela. É ela que provê o nosso sustento e a nossa sobrevivência. Sem ela, nada somos! Esta é também a experiência do povo semita (o povo da Bíblia) na sua relação de amorosidade com a Mãe Terra. O profeta Isaías, por exemplo, se refere a nossa Mãe Terra da seguinte maneira: “Porque assim diz o Senhor, que criou os céus, o único Deus, que formou a terra, que a fez e a firmou em suas bases; ele não a fez para ser um caos, mas para ser habitada”. (Is 45, 18) Terra como dom para todos! A ser habitada por todos, como presente do Deus vivo, que caminha com o seu povo.

Nada de concentração de uma parte dela nas mãos de alguns poucos. Foi também nesta perspectiva que nosso bispo Pedro, identificou no latifúndio o inimigo do povo. Na concentração da terra, segundo ele, estão as bases da desgraça hereditária da sociedade brasileira. No seu poema “Confissões do Latifúndio”, ele resume assim: “Por onde passei, plantei a cerca farpada, plantei a queimada. Por onde passei, plantei a morte matada. Por onde passei, matei a tribo calada, a roça suada, a terra esperada… Por onde passei, tendo tudo em lei, eu plantei o nada”. (Pedro Casaldáliga)

Por falar em terra, Jesus hoje está em sua terra natal. Mais precisamente na Sinagoga de Cafarnaum, ensinando no meio das serpentes venenosas. Exatamente no lugar onde Ele havia iniciado o seu ministério público, o seu projeto messiânico. Lembrando que a sinagoga, para as comunidades judaicas, desempenhava um papel mais importante do que propriamente o Templo de Jerusalém. Ao contrário das autoridades judaicas, Jesus ensina com autoridade e sabedoria. Autoridade esta que o povo começava a perceber, uma vez que ela decorria da sua condição divina, pois Ele era ao mesmo tempo Deus e homem: como disse muitas vezes, era Filho de Deus Pai, e era Filho do Homem. Entretanto, aquelas autoridades não estavam interessadas naquilo que Jesus ensinava, mas no fato d’Ele se colocar como enviado de Deus, prometendo a vida definitiva. Assim tratam de persegui-lo e tramar a sua morte em nome da ordem estabelecida.