Bom pastor

 

Quarto domingo da páscoa. Os dias correm velozes, muito embora dando-nos a impressão de que não. Em menos de um mês estaremos celebrando a Festa de Pentecostes, que este ano cai no dia 23 de maio. Seguimos na nossa rotina: distanciamento físico, máscaras, álcool gel. Todos os cuidados possíveis para não nos encontrarmos com o vírus, que segue abraçando os incautos. Bem faz um de meus amigos, comentando comigo esta semana: “De tanto álcool gel que estou usando, que as minhas mãos contraíram cirrose”.

Domingo do bom pastor. Por falar em pastor, fui rezar com ele hoje. Sempre uma inspiração a mais estar ali na sepultura de Pedro. Uma paz de espírito invade a alma, irradiando luz por todos os nossos poros. Uma energia positiva transcende daquele homem, como se vivo estivesse no meio de nós. Gosto de rezar com ele, pois saio cada vez mais revigorado e disposto a lutar pelos mesmos ideais seus. E não são poucos.

“Para descansar eu quero só esta cruz de pau com chuva e sol, este sete palmos e a Ressurreição!” Este seu epitáfio ressoa em nosso intimo. Impossível não se deixar contagiar por tamanho desapego. Um homem completamente despojado, que vivia conforme as sua convicções, de uma radicalidade evangélica a toda prova. Uma vida frugal. “Estética evangélica’, diziam os seus adversários. Lembro da estola que me deu de presente, quando de volta de uma de suas viagens à Nicarágua. Havia ganhado do padre nicaraguense Ernesto Cardenal. Assim que me avistou, foi me dizendo: trouxe para você. É a sua cara”. Eu teria dificuldade de dar um presente assim a outrem. Pedro não. Era desapegado ao extremo.

Tive três pastores que foram as minhas referências no meu ministério sacerdotal. Primeiro deles foi Dom Claudio Hummes. Trabalhei em sua enorme diocese, nos meus tempos de jovem estudante de teologia. Morava com mais outros companheiros na favela do Jardim Oratório, em Mauá/SP. Naquele tempo em que o documento de Puebla (1979) nos dizia em letras garrafais: “a teologia é o ato segundo. Primeiro vem a inserção no meio dos pobres”. Ah se os jovens padres, ao menos lessem o documento de Puebla! Talvez não tivéssemos tanta ostentação e luxo em suas vestes clericais e a necessidade insana do uso de clégima, como documento de identidade para dizer que são sacerdotes

Este pastor que é Dom Claudio, foi quem ordenou-me diácono no ano de 1988. Uma celebração linda, em uma das comunidades da favela. Lembro ainda hoje das palavras ditas pelo bispo na sua reflexão. Encontramos-nos aqui na prelazia anos mais tarde, quando este veio preparar conosco o Sínodo da Amazônia. Não sabia que eu estava por aqui. Teceu um comentário que me deixou lisonjeado, que inflou o meu ego: ”Chicão, você foi o fruto que deu certo. Estar aqui com Pedro foi a melhor coisa que você fez. Este lugar tem tudo a ver com você. São ordenações assim que os bispos tem prazer em celebrá-las”.

O outro foi Dom Angélico Sândalo Bernardino. Grande homem, que sabe ser amigo de quem trabalha consigo e dos pobres. Ensinou-me muito no meu engatinhar os primeiros passos do meu sacerdócio. Foram dias de intensa convivência, sob a batuta de seu pastoreio. Tinha ideias claras acerca de como ser um bom pastor, a exemplo de Jesus de Nazaré. Ficou chateado quando fui lhe dizer que estava trocando a periferia de São Paulo pela prelazia de São Félix do Araguaia. “Meu irmão, só vou te perdoar, porque você vai cair nas mãos do irmão Pedro Casaldáliga. Vou ligar e dizer para ele que está ganhando um jovem grande sacerdote”. Também saí desta nossa conversa com o ego nas alturas.

Hoje, Jesus se proclama aos seus: “Eu sou o bom pastor!”. (Jo 10,11). Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas, como pedro sempre fez nestes anos todos que esteve à frente da Prelazia de São Félix. Houve momentos que, em decorrência de sua opção clara e definitiva ao lados dos mais pobres, seria interrompida a qualquer momento, pelas inúmeras ameaças à sua vida. Mas nada disso o amedrontava e nem o fazia recuar ou desistir da luta na defesa intransigente dos pequenos. Nestas horas é que costumava repetir uma de suas frases prediletas: “Minhas causas valem mais do que minha vida”. Pedro, místico, poeta, profeta, pastor, que muito me ensinou. Foi o terceiro bispo a passar pela minha vida, e que impregnou a minha alma. Foi por causa dele que abracei uma de suas causas definitivamente: a causa indígena. Sou feliz no Araguaia!