O desafio da práxis cristã

Mais um dia frio, aqui pelas bandas do Araguaia. Uma terça feira de um vento gelado, balançando a folhagem das árvores, proporcionando uma sensação ainda mais fria. Por mais frio que esteja no Araguaia, nada se compara as geleiras que se abatem sobre outras regiões do Brasil. No dia de ontem, por exemplo, mais um pobre sofredor em situação de rua, de 60 anos, não resistiu ao frio da madrugada. Que triste, morrer de frio! Situação cruel e desumana. Um país que não cuida dos seus, mas possibilita situações como estas. É mais um invisível que se vai. Mais um número nas estatísticas. Uma sociedade nada humana, que naturaliza a morte de forma tão banal. Vivemos a barbárie da cultura de banalização da vida.

Não foi assim que Deus nos criou. Não foi para isso que Ele nos possibilitou a vida. Nascemos para sermos felizes, plenos e realizados. Nós é que criamos as situações adversas, em que alguns poucos de nós, gananciosamente, têm tudo em excesso, e os demais padecem sem ter o mínimo necessário para viver com dignidade de filhos e filhas de Deus. Neste sentido, enquanto ora escrevo, em plena pandemia, mais bilionário, se prepara para realizar um de seus caprichos: fazer um “turismo espacial”, ao custo de 1 bilhão de dólares. A espaçonave percorrerá cerca de 80 quilômetros acima da Terra. Mesmo com tanta dor, vivenciada pela humanidade, pela perda dos seus, há uma fila enorme destes bilionários que desejam fazer esta aventura. Até quando, Senhor?

Vivemos numa sociedade cruel e desumana. Com certeza não foi desta forma que Deus pensou, quando nos fez adentrar a este mundo. Quem realmente cria as condições de desigualdade é o próprio homem, na sua ganância de querer sempre mais, em detrimento daqueles que nada possuem. Sendo assim, não fazemos parte da família de Jesus, como nos adverte Jesus no texto do Evangelho, proposto para a liturgia do dia de hoje (Mt 12,46-50). O interessante a ser observado, é a compreensão que alguns têm, de serem partícipes desta “família de Jesus”. Ao que tudo indica, não basta dizer que somos integrantes dela. O ser que não é ser.

Estamos nestes dias também, acompanhando atentamente o desenrolar de uma cruel perseguição, sofrida pelo padre Lino Allegri, em fortaleza (CE). Este padre, vem sofrendo seguidas formas de ataques e ameaças (inclusive de morte), de apoiadores do presidente da República, após o mesmo, na homilia de uma de suas celebrações, tecer críticas a posição do mandatário da Nação, na condução da pandemia, que já ultrapassou a casa das 543 mil mortes. Pessoas ditas católicas, mas que aceitam passivamente a naturalização da morte de tantos irmãos nossos. Não tenho dúvida de que tais pessoas, se sentem inclusas nesta mesma “família de Jesus.” Se esquecem do que fora dito por Ele, que o evangelista Mateus nos apresenta assim: “Pois todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”. (Mt 12,50)

Fazer a vontade de Deus, eis o grande desafio da família, constituída pelos seguidores e seguidoras de Jesus. Requer, antes de tudo, uma leitura atenta da realidade que nos cerca. O cristão é aquele que se antena à realidade, e procura decifrá-la à luz do Evangelho. Percebe as contradições existentes nela, e busca mecanismos de enfrentamento da mesma. Antes de “salvar almas”, precisamos salvar os corpos feridos, machucados pela desigualdade cruel e desumana. Nossa missão é descê-los das cruzes em que se encontram crucificados, pela ganância e ambição dos anjos da morte. Isso exige um compromisso de fé, que busca a transformação desta realidade, e não como quer um setor de nossa Igreja, mais preocupado com o retorno aos valores pré-Concilio Vaticano II (1962-1965), numa clara atitude de descompromisso desta Igreja com as causas dos pequenos. Uma Igreja voltada sobre si mesma, contemplando as suas vísceras, desconsiderando os avanços que nos possibilitaram a leitura crítica dos “sinais dos tempos.”

Os tempos mudam e com eles nós. O passado serve-nos como um autêntico paradigma para olharmos para o futuro e melhor viver o presente fidedignamente na radicalidade proposta por Jesus. Ao ignorarmos o passado, estamos correndo os sérios riscos de cometer os mesmos erros dele. Através do retrovisor da história, olhamos para o passado e ajustamos nossas ações no presente, para alcançarmos um futuro promissor para todos e todas. Não é atoa que os alemães mantiveram intactas as estruturas dos campos de concentração nazistas, para que as gerações vindouras vejam os horrores cometidos contra os seres humanos. Viver intensamente o presente, é uma das dádivas de Deus para nós. Neste sentido, gosto da concepção de Santo Agostinho que dizia: “Viver sempre preparado para morrer, mas viver como se nunca fôssemos morrer.”