A dimensão do Reino de Deus


Quarta feira da décima sétima semana do tempo comum. Neste dia, trago um coração entristecido em meu peito. Não contive as lágrimas, ao lembrar-me do grande amigo que no dia de ontem, completou mais um ano de sua páscoa. Padre Ernesto de Freitas Barcelos, partiu para a casa do Pai, em 2018, aos 63 anos de idade. Um padre pé no chão. Padre dos pobres. Passou alguns anos aqui conosco, como agente de pastoral da prelazia de São Félix do Araguaia. Com suas sandálias surradas sob os pés, encarnou como uma luva na caminhada desta igreja, sobre a batuta de Pedro.

Conheci Ernesto em 1989, ano de minha ordenação sacerdotal. Ficou hospedado conosco em nosso barraco, na favela do Jardim Oratório, em Mauá. Foi um dos participantes da equipe missionária, que preparara a minha ordenação. Um dos mais assíduos frequentadores do Curso de Verão do CESEEP, em São Paulo. Trazia sempre consigo várias pessoas, atuantes nas comunidades da diocese de Itabira-Coronel Fabriciano, pois se preocupava com a formação das lideranças das comunidades. O padre das sandálias de dedo, como os seus adversários o reconheciam.

Sandália de dedo que era também a marca característica da nossa prelazia. Alguém por aqui, deu a elas o singelo nome de prelazias. Talvez porque, Pedro nunca abandonava as suas, por onde quer que fosse. Assim, éramos identificados facilmente por trazê-las agarradas aos nossos pés. Este era o “marketing evangélico estratégico” da política da prelazia, como costumavam dizer os algozes adversários. Certo é que lá íamos todos e todas com as nossas prelazias, marcando os rastros de nossa caminhada histórica, enquanto igreja dos pobres.

Aderi muito cedo ao uso das sandálias, mesmo antes de ser “um prelazia”. Nunca fui muito de usar sapatos. Logo percebi que não estava sozinho nesta caminhada. Ainda na teologia, conheci de perto a vida de outro grande homem de Deus, apesar baixo em sua estatura física. Estou me referindo ao padre Alfredinho, quando o conheci num modesto barraco de favela, na Região do ABC Paulista. Era conhecido como o Servo Sofredor e o companheiro dos pobres. Um homem de profunda oração, contemplativo, um místico. Morava com os sofredores de rua, dormindo ao relento e fazendo-se, ainda mais, excluído com os excluídos. Com a saúde fragilizada, voltou para a favela. Morreu no silêncio e no abandono, pobre com os pobres. Como Pedro, foi sepultado sem pompa, realizando assim o seu abandono pascal na experiência do Ressuscitado.

Ernesto e Alfredinho, dois servos de Deus, que deram as suas vidas pelo Reino. Trabalharam na construção deste Reino aqui e agora. Como Jesus, anunciaram e viveram a proposta do Reino, nas suas ações radicais cotidianas. Tinham a concepção clara de que o Reino de Deus começava aqui e agora, por mais que se estendesse em plenitude como algo definitivo na meta-história. Não esperaram e nem projetaram este Reino, apenas para o além morte, mas construíram paulatinamente um dia de cada vez. Infelizmente, algumas das lideranças religiosas de nossa Igreja, projetam o Reino no além, no pós-morte, talvez por não quererem se comprometer com a luta acirrada dos pobres para viverem aqui e agora na perspectiva deste Reino anunciado por Jesus. A estes interessa mais a salvação das almas. Os corpos mutilados destas, pouco lhes importam, conquanto suas almas “estejam salvas.”

Reino que se faz na história humana. Reino de justiça paz e verdade. Reino que passa necessariamente pelas nossas ações concretas, como as de Jesus. Ao responder à João Batista, Ele assim o diz: “Voltem, e contem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a Boa Notícia é anunciada aos pobres.” (Lc 7,22) Ou seja, a resposta dada por Jesus, não é uma simples ideia ou teoria. É uma ação concreta que realiza o que se espera de sua ação messiânica: a libertação dos pobres e oprimidos.

Reino de Deus que o evangelho do dia de hoje nos coloca no presente da história. No aqui e agora. No já, e ainda não. Reino que precisa ser procurado como uma busca constante e incessante. Para fazer parte deste Reino é necessária uma adesão total. Uma decisão pessoal afirmativa, de quem se joga no vazio do abismo da existência humana, mas com a convicção de que estará se jogando nos braços amorosos de um Pai que muito ama. Decisão que cabe a cada um e cada uma. Não estamos sós nesta decisão. Conosco está Aquele que fez a sua adesão primeira de entrega total nas mãos do Deus de ternura e compaixão, que quis que o seu Filho se fizesse um conosco. As forças da morte não prevalecerão sobre o dom total que é a vida em plenitude. Venha teu Reino, Senhor!