O milagre de Jesus que mais recebeu destaque na Bíblia é o milagre da multiplicação dos pães. Esse é mencionado seis vezes. Marcos e Mateus mencionam duas multiplicações de pães (Mc 6,30-45; 8,1-10; Mt 14,13-21; 15,32-39. Lucas e João mencionam apenas uma vez (Lc 0,10-17; Jo 6,1-13).
Os biblistas hoje sustentam que houve uma única multiplicação de pães. Ora, como poderiam os discípulos questionar Jesus, dizendo que não teriam pães para saciar a fome da multidão (Mc 8,4), se já tinham visto um milagre semelhante, a primeira multiplicação? (Mc 6,35-36). Acaso não recordavam que Jesus já havia dado uma vez de comer milagrosamente a multidão no deserto? Certamente existiu uma multiplicação dos pães, mas a tradição cristã posterior desdobrou duas versões distintas.
Mas uma grande pergunta vem em nossa mente. Por que de um único acontecimento se formaram dois? A resposta a essa pergunta se deve a importância que esse milagre adquiriu nos primórdios do Cristianismo. Para os primeiros cristãos o milagre dos pães se tornou o mais significativo dos milagres, como se vê pelo fato de ser relatado pelos quatro evangelistas. Essa importância não se devia ao fato em si (havia outros mais impressionantes, como a ressurreição de Lázaro), senão o que o milagre simbolizava: a Eucaristia.
Com efeito, os primeiros seguidores de Jesus viram no milagre dos pães um prenuncio da Eucaristia que Jesus iria celebrar no final da sua vida, na última ceia. A partir daquele dia, o pão dado a multidão no deserto, estava convidando todos a participar de outra mesa, a da Eucaristia, onde Ele ia entregar outro pão: o pão do seu próprio corpo.
Que o milagre do pão era interpretado como anuncio da Eucaristia se vê no quarto evangelho, onde se diz que Jesus, depois da multiplicação dos pães, pediu ao povo que não se contentasse com o fato de comer pão e encher o estomago, senão que se buscasse outro pão: o da vida eterna (cf. Jo 6,52-58). Ou seja, que o relato da multiplicação dos pães era um excelente meio de catequizar as pessoas sobre a importância da Eucaristia.
Porém esse milagre trazia um inconveniente na catequese aos pagãos. Jesus o havia realizado no lado ocidental do mar da Galileia, ou seja, em território judeu e para um grupo de judeus (Mc 6,1. 32). Era como dizer que o convite para participar da Eucaristia foi feito exclusivamente para os judeus, e não para os outros povos.
Então surgiu o relato da segunda multiplicação de pães para mostrar que Jesus queria saciar a fome de todos os povos e não apenas judeus. Observemos agora no próprio texto algumas pistas para compreender o significado das duas multiplicações.
A primeira multiplicação aconteceu em território de Israel (Mc 6,1). Em troca, na segunda multiplicação Jesus está no lado oriental do Lago da Galileia (Mc 7,31), ou seja, em território pagão.
Na primeira multiplicação, dirigida aos judeus, Jesus tinha apenas 5 pães (Mc 6,38), pois cinco lembrava os cinco livros do Pentateuco (Gn, Lv, Ex, Dt e Nm). O que remete a Lei de Moisés, que era alimento da alma do povo judeu. Na segunda multiplicação, dirigida aos pagãos, se faz com 7 pães (Mc 8,5); porque segundo a crença popular existia no mundo 70 nações pagãs; sua lista aparece inclusive na Bíblia (Gn 10). Por isso, o 7 era mais adequado para reapresentá-los.
Na primeira multiplicação comeram 5 mil pessoas (Mc 6,44). O mesmo que dizer 5 (número sagrado), multiplicado por 1000 (multidão). O que indica a multidão do povo judeu. Em troca, na segunda multiplicação comeram 4 mil pessoas (Mc 8,9). Ao dizer 4, (remete a ideia dos quatro pontos cardeais da terra), multiplicado por 1000. O que indica a multidão de todos os povos da terra.
Na primeira multiplicação sobraram 12 cestas de alimento (Mc 6,43), porque o número 12 alude às 12 tribos de Israel. Em troca, na segunda multiplicação sobraram 7 cestas (Mc 8,8). Porque o número 7 remete as nações pagãs.
Em síntese, ao redigir o relato da multiplicação dos pães, o evangelista Marcos, escrito por volta do ano 70, queria mostrar que Jesus se fez solidário com o seu povo, dando lhes o pão. No entanto, escrevendo para os pagãos, também sentiu a necessidade de mostrar que Jesus queria dar o seu pão também para estes, e não apenas para os judeus. E assim nasceu o relato da segunda multiplicação de pães.
Depois disso, Mateus, que escreveu o Evangelho um pouco mais tarde, se limitou a fazer o mesmo que Marcos, redigindo duas multiplicações de pães. Lucas e João, que escreveram mais tarde ainda, acharam repetitivas as duas multiplicações, e apenas relataram uma única.
Eis a mensagem: primeira multiplicação (Jesus dá o pão para os israelitas famintos); segunda multiplicação (Jesus dá o pão também para os estrangeiros famintos). Cada um com o seu pão, pois Jesus se fez pão para todo o mundo, e também ensina seus seguidores a partilhar o pão terreno, para que o mundo todo tenha pão.