23ª semana do tempo comum, assim nos diz a liturgia da Igreja Católica. Uma sexta feira de muito calor, vento e poeira aqui pelas bandas do Araguaia. Levantei ainda muito cedo para ver o sol nascer, dourando as águas do Araguaia. Um espetáculo de rara beleza. Uma cena imperdível: estar em Mato Grosso e ver o sol despontar no Tocantins. De lá, da Ilha do Bananal, ele se faz imponente. Daí uma das razões de meu encantamento e de ser feliz e fincar as minhas raízes mineiras nesta terra. Aqui me encontrei e tracei a minha caminhada eclesial, sob a batuta de Pedro e em companhia com os povos indígenas, sendo um com estes povos que habitam estas terras. Desenvangelizando e descolonizando, como queria o poeta dos pobres.
Vivemos dias de profundas incongruências e contradições. A pandemia não nos trouxe apenas a morte de inocentes sem vacina, mas um arcabouço enorme de penúrias: desemprego, fome, vulnerabilidade social, despejos de famílias inteiras, pessoas em situação de rua, falta de perspectivas de dias melhores… Enquanto isso, os governantes de plantão, miram as eleições que se avizinham, numa total demonstração de que não lhes interessa encontrar soluções para resolver a situação que os mais pobres estão passando. A pandemia veio realçar ainda mais a sociedade desigual e estratificada em que vivemos. Uma das maiores concentrações de renda do mundo. Mediante tal contexto, cabe aqui uma das frases atribuídas a Santo Agostinho: “O supérfluo dos ricos é propriedade dos pobres.”
Uma sociedade de hipocrisias. Neste sentido, o evangelho de hoje veio a calhar. Hipócritas, diz Jesus aqueles que não são capazes de enxergar as suas limitações e fraquezas, mas querem corrigir os demais a sua volta. Ao contrário de Deus, somos mais propensos a julgar as demais pessoas do que a vê-las com os olhos e o coração da misericórdia. Não é de julgamentos prévios que as pessoas necessitam, mas de compaixão, de ternura, de acolhimento fraternal. Geralmente o julgamento é acompanhado pelo pré-conceito, ou seja, daquele conceito prévio que elaboramos, sem ao menos conhecer a real situação pela qual a pessoa está passando. Emitimos assim o nosso juízo e já as condenamos nos nossos tribunais particulares, sem inclusive dar a chance delas se defenderem.
Para Deus é diferente. Ele nos julga com a mesma medida que usamos para as outras pessoas. A rigorosidade com que julgamos as outras pessoas, vendo o cisco que há no olho delas, mostra o quanto somos incapazes de enxergar as nossas próprias mazelas, limitações e fragilidades (trave) e de saber que diante de Deus, somos todos pecadores. Com atitudes como estas, mostramos o quanto estamos distantes de Deus e do Projeto libertador instaurado por Jesus de Nazaré, que afirmou em letras garrafais: “Eu não vim para julgar o mundo, mas sim, para salvá-lo”. (Jo 3,17) Se Ele assim o disse, quem somos nós para dizer o contrário?
Quem se sente muito próximo de Deus sabe da sua dimensão de pecador e da necessidade da intervenção do Criador em suas vidas. Quanto mais próximos d’Ele, mais se realça a nossa pequenez diante da infinitude de sua grandeza. Já aqueles e aquelas que se postam distantes d’Ele, não conseguem vislumbrar aquilo que são, colocando-se às vezes no lugar de Deus. A simplicidade e a humildade sedem lugar a ao orgulho e a prepotência cega. Faz sentido uma das frases ditas por Santo Agostinho quando afirma: “O orgulho é a fonte de todas as fraquezas, porque é a fonte de todos os vícios.”
Deus não quer que as pessoas se percam em hipótese alguma, nem sente nenhum prazer em condená-las. Se tem uma coisa que Jesus fez questão de anunciar, foi a amorosidade do rosto maternal e misericordioso de nosso Deus. Um Deus que manifestou toda a sua bondade e o seu amor através de Jesus de Nazaré, no intuito de a todos salvar. Esta é a perspectiva também para as novas relações que se estabelecerão numa sociedade nova. Não uma sociedade onde predomina o julgamento e a condenação, mas de perdão e acolhida. Nesta nova sociedade o julgamento caberá tão somente à Deus. Só Ele pode julgar.
Jesus é nosso mestre e ao mesmo tempo o nosso guia. Ele é um de nós que caminha à nossa frente, abrindo-nos o caminho da libertação. Entretanto, esta sua presença no meio de nós incomodou a muitos, pois colocou o mundo dos homens em julgamento, provocando divisão e conflito, e exigindo posicionamento e decisão. De um lado, os que acreditam em Jesus e vivem o amor, continuando a palavra e a ação d’Ele em favor da vida. De outro, os que não acreditam n’Ele e não vivem sob a perspectiva do amor, mas permanecem fechados em seus próprios interesses egoístas, gerando opressão e exploração. Se fazem cegos guiando outros cegos. Somos seres grávidos do esperançar. O horizonte da esperança habita no mais recôndito de nosso ser, impulsionando-nos a caminhar pelas estradas da vida. Como seguidores e seguidoras de Jesus, recorremos a Agostinho para com ele mais uma vez dizer: “Enquanto houver vontade de lutar haverá esperança de vencer.” Insistir! Resistir! Persistir! Sempre!
Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.