Desvendando a hipocrisia

24ª semana do tempo comum, reza a liturgia diária católica. Uma quinta feira triste para os povos indígenas, que estão mobilizados na defesa de seus direitos em Brasília. Por incrível que pareça, estão lutando para que seja cumprido aquilo que está escrito em letras garrafais na Constituição Federal de 1988. Somente no Brasil da “República das Bananas”, tal efeméride acontece. Mais uma vez o julgamento do “Marco Temporal” foi adiado, porque um dos ministros daquela Suprema Corte, pediu vistas do processo que ali tramita. Inexplicavelmente, Alexandre de Moraes, ao invés de proferir o seu voto, adiou mais uma vez a tortura que várias naçoes indígenas estão vivendo neste atual momento de nossa história republicana.

É bom que se diga que, a grande questão que está por trás deste “Marco temporal”, é a desigual luta pela terra no Brasil. De um lado os indígenas, que são os legítimos donos da terra; e de outro o grande capital, transvestido de madeireiros, garimpeiros, pecuaristas e o agronegócio, de olho na grilagem das terras que sempre pertenceram às nações indígenas, mesmo antes da chegada do voraz colonizador. Terra esta que, ao contrário da concepção dos ruralistas, não é um bem de capital, mas um espaço sagrado coletivo, cuja pertença, é da comunidade originária, pois como mesmo disse umas das lideranças indígenas: “A terra não nos pertence. Nós é que pertencemos a ela. O que acontecer à terra, recairá sobre os filhos da terra”. Eles e nós, por tabela.

Uma sábia concepção dos povos indígenas, que muito nos ensina. Com esta sua ideia, todo o meio ao qual estão interligados, encontra-se preservado, pois é daquele espaço vital, que retiram a sua própria sobrevivência. Pensamento difícil de adentrar a cabeça de um ruralista, que veem na terra a oportunidade de acumular capital, mesmo que para isso tenha que destruir tudo à sua volta, conquanto os seus lucros fartos sejam garantidos. São, portanto, os indígenas que ainda preservam as nossas florestas, os rios, os animais, flora e fauna. Quem percorre aqui pelas terras de Mato Grosso, sabe disso que estou falando. Há diferença entre uma terra que está nas mãos do agronegócio e a Terra Indígena (TI). Foi por motivos como estes que Pedro chegou a profetizar: “Todo latifúndio é um mal em si mesmo, seja ele produtivo ou improdutivo, pois é fruto do acúmulo e da concentração”.

A terra é um bem sagrado para as populações indígenas. Patrimônio de toda a coletividade e não de um determinado cacique. O sentimento de pertença a cada uma das nações, presentes no Brasil é diretamente proporcional ao sentimento de pertença ao território, ao qual vivem, cultuando os seus saberes tradicionais e os valores de sua ancestralidade. Há uma relação simbiótica e cosmológica entre aquilo que acreditam e os valores que lhes vem do espaço sagrado de seus territórios. Negar-lhes esta possibilidade de convivência, entre a terra e os seis valores, é feri-los de morte, o mesmo que tirar-lhes o ar que respiram. Não podemos, em hipótese alguma, permitir que este “Marco Temporal” seja aprovado. A nossa própria sobrevivência está relacionada com esta decisão. Indignar-se é preciso, como nos diz o poeta e escritor brasileiro Augusto Branco: “Quando eu perder a capacidade de indignar-me ante a hipocrisia e as injustiças deste mundo, enterre-me: por certo que já estou morto”.

No Brasil de agora, a hipocrisia se transformou em virtude teologal. Fundamentada na mentira, segue fazendo admiradores, bem como seguidores. Aliada da mentira, a hipocrisia ganhou o chão de nossas vidas, a tal ponto de os hipócritas de plantão, nem sequer ficarem corados, diante de sua desfaçatez. A hipocrisia é tanta que, para justificar a possibilidade de aprovação do tal “Marco Temporal”, se aliaram a mentira de que, caso o tal marco não seja aprovado, será o fim do agronegócio e os seus ganhos fartos diabólicos. Se bem que o que mais incomoda nem é a mentira contada, mas os incautos que ainda acreditam nesta inverdade. Para estes desprovidos de conhecimento, funciona a máxima do nazista Joseph Goebbels: “Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade”.

A hipocrisia caminha lado a lado com a história da humanidade. Ela também se fez presente na sociedade palestinense no tempo de Jesus. O texto do evangelho de hoje, por exemplo, relata a estada de Jesus na casa de um fariseu. Para não perder o costume de sua classe, ele faz um julgamento do mestre pra lá de inusitado, quando pensa consigo: “Se este homem fosse um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando nele, pois é uma pecadora”. (Lc 7, 39-40) Ao assim agir, aquele fariseu hipócrita, não se considera um pecador. Prefere ficar numa atitude de julgamento. Jamais é capaz de entender e experimentar a dimensão revolucionária do perdão que liberta e do amor que faz nos afastar da hipocrisia. Longe das atitudes hipócritas, para pensarmos na mesma ótica do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare: “Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são”.

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.