E não é que sextou de novo! Uma sexta feira de apreensão para os povos indígenas quanto ao futuro de seus territórios. Tanto aqueles que permanecem em Brasília, quanto os que estão nas aldeias, não sabem ao certo que rumo será dado à votação do Marco Temporal, pelo Supremo Tribunal Federal. O que se esperava do atual governo, foi manifesto no voto dado por um dos ministros daquela corte, demonstrando assim a sua afinidade com os ruralistas. Não se esperava outra atitude deste pobre senhor, repetindo fielmente a cantilena do desgoverno, que não possui empatia alguma para com os povos desta terra.
Continuamos assim na nossa incansável busca da “Terra Sem Males”. Um desejo de todos os povos que vivem hoje em solo brasileiro. Nunca que o Mito Guarani esteve tão presente no universo do desejo e dos sonhos destes povos. Assim como os Guarani, a busca da chamada “Terra Sem Males”, é uma constante no jeito de ser e na concepção de mundo dos povos originários. Desejo de estar em um lugar intocado, onde não exista nem rivalidades, invasões, violência, mas reconhecimento e autodeterminação. Um espaço mítico sagrado, onde possam viver seus sonhos, anseios naturais de vida, cultivando e cultuando a sua ancestralidade e saberes tradicionais de seu povo.
A mesma terra em que na tradição bíblica aparece como: “Uma terra onde há leite e mel com fartura, como lhe prometeu o Senhor, o Deus dos seus antepassados”. (Deut 6,3) Importante salientar que no contexto bíblico, a expressão “terra que mana leite e mel” queria significar a riqueza e a produtividade da terra de Canaã, o território que Deus havia prometido à seu povo. Uma terra extremamente fértil, apropriada para a produção abundante de mantimento para todos os que nela habitassem. Terra que se torna assim um dom de Deus aos seus, para que pudessem viver em paz, numa relação estreita entre eles e este espaço sagrado, fonte de subsistência para todos.
Não somente os povos originários anseiam por esta “terra sem males”. Todos nós, de alguma maneira, acalentamos o sonho de estar num espaço onde nos sintamos acolhidos, como se estivéssemos no regaço do próprio Deus a nos acolher. Neste sentido, a família se torna para nós este lugar ao qual queremos voltar a cada final de dia trabalhado. Sentir o calor humano das pessoas que convivem conosco no dia a dia, dividindo o fel e o mel. Sentimentos estes que afloraram ainda mais nesta pandemia, dado o clima de insegurança ao qual estamos vivendo nos dias atuais. Nossos lares assim, se transformaram na nossa “terra sem males”.
Todavia, lá fora, esta ainda não é uma realidade palpável, visível. Os sinais de morte contrastam com os sinais de vida da terra que todos buscamos. Nesta semana, por exemplo, foi aprovada pelo Senado em 1º turno a PEC 13/2021, que desobriga por dois anos, estados, municípios e o Distrito Federal, a não terem que cumprir o artigo 212 da CF, que os abriga a aplicar 25% das suas receitas em educação, anistiando inclusive governadores e prefeitos que não cumpriram esse dispositivo da lei constitucional nos anos anteriores. Na terra com males dos nossos representantes políticos, educação não é prioridade, até porque, um povo que não aprendeu a pensar, é um povo mais fácil de se manipular.
Como os povos indígenas, estamos em busca permanente da “terra sem males”. Terra esta que também pode ser traduzida pelo Reino sonhado por Deus, trazido por Jesus para o meio de nós. Reino este que pressupõe a construção pelas nossas ações, que envolve um longo processo histórico de compromisso com o Reino de Deus. Reino de Deus que se dá na história e transcende para além dela, numa perspectiva soteriológica (do grego sotérion + logo + ico), que é aquela parte da teologia que estuda a abrangência de salvação da humanidade. No cristianismo foi absorvido como a doutrina da salvação realizada por Jesus Cristo em favor da humanidade, como redenção cristã.
Uma “terra sem males” de outro mundo possível! Este que aí está não nos cabe a todos e todas. É um mundo segregador e desigual. Lutamos por construir outro mundo que nos faça todos irmãos e irmãs e onde haja lugar para todos. Como no mito do povo Guarani, estamos em busca deste outro mundo, permeado pelo profundo anseio do ser humano por uma vida melhor, mais feliz, sem guerras e sem maldades. Sem a ganância e o acúmulo de uns poucos sobre aquilo que é de todos. A terra é dom maior de Deus! Não é ela que nos pertence, mas nós que a ela pertencemos, como destino final: “Então o nosso corpo voltará para o pó da terra, de onde veio, e o nosso espírito voltará para Deus, que o deu”. (Ecle 12,7). Na “terra sem males” que buscamos, não haverá lugar para a divisão desigual, como nos alerta o fotografo brasileiro Sebastião Salgado: “Constatamos que o mundo está dividido em duas partes: de um lado a liberdade para aqueles que têm tudo, do outro a privação de tudo para aqueles que não têm nada”.
Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.