Quarta feira da 30ª semana do tempo comum. Uma manhã carrancuda, aqui pelas bandas do Araguaia. “São Pedro amanheceu de mau humor”, comentário que ouvi assim, que cheguei na padaria. Verdade é que o dia amanheceu preguiçosamente e uma chuvinha molhava mansamente a terra. Até minhas “testemunhas” de cada manhã iniciaram o dia em marcha lenta. Aqui e ali se ouvia o cântico deles, dando o ar da graça. É a vida que renasce em cada amanhecer, demonstrando que não estamos sós nesta caminhada em direção ao horizonte que se descortina na existência. Cada dia endo único nos planos de Deus para nós.
Em dias assim, a melancolia toma conta de mim. Sou movido pelo espirito da saudade que faz acampamento em meu coração. Em dias assim, volto ao passado e me vejo vivendo de novo aquilo que outrora já vivi. Recordei com saudade da minha ordenação diaconal, por exemplo. Naquele dia em que o cardeal Dom Frei Cláudio Hummes, OFM, celebrou comigo esta data tão importante em minha história. As comunidades do Jardim Oratório, em Mauá (SP), estavam em festa comigo. Depois de viver e convier com eles aqueles anos todos do curso de teologia, chegara o dia do diaconato. Dom Cláudio, a frente da diocese de Santo André, era um espelho para todos nós, jovens naquele momento histórico, por sua incansável luta pelas causas trabalhistas da Região do ABC Paulista.
Recordo ainda hoje do momento mais forte daquela celebração. Assim que cantamos o “Pai Nosso do Mártires”, não me contive e as lágrimas banharam o meu rosto. Já havíamos cantado aquela canção uma centena de vezes em nossas celebrações, mas naquele momento, foi especial. Vi a minha história de vida sendo retratada em cada uma daquelas palavras, sabiamente compostas pelo amigo Cirineu Kuhn, contemporâneo comigo no curso de teologia no Instituto Teológico São Paulo – ITESP. “Queremos fazer tua vontade, és o verdadeiro Deus libertador. Não vamos seguir as doutrinas corrompidas pelo poder opressor. Pedimos-te o pão da vida, o pão da segurança, o pão das multidões. O pão que traz humanidade, que constrói o homem em vez de canhões”. https://www.youtube.com/watch?v=lsPDR_912ls
Encontrei-me com Dom Cláudio 31 anos depois, quando esteve aqui conosco na Prelazia 2019), preparando-nos para o Sínodo da Amazônia. Como me confidenciara, não se surpreendeu ao ver-me por aqui. Fiquei deverasmente lisonjeado com o que me dissera: “Só podia mesmo vir trabalhar nesta região. Você tem tudo a ver com esta Prelazia e com a proposta de Igreja de Dom Pedro. Pena que muitos jovens sacerdotes só aspiram mesmo a carreira eclesiástica, poder e privilégios. Poucos são aqueles que se aventuram num tipo de trabalho como este”. Confesso que Dom Cláudio inflou o meu ego com as suas palavras.
Depois de viajar nestas minhas elocubrações, lembrei-me de que estava com a minha “Bíblia Edição Pastoral”, aberta sobre as pernas, diante do texto do Evangelho de hoje (Lc 13,22-30). Deparei com Jesus nos dando um puxão de orelhas ao afirmar: “Afastai-vos de mim todos vós que praticais a injustiça!” (Lc 13, 27) Ou seja, a prática da justiça é a “conditio sine qua non” (condição sem qual não seria possível) de se fazer a experiência de caminhar com Jesus e fazer parte de seu discipulado. Ou se pratica a justiça, passando pela “porta estreita”, escolhendo o caminho de vida que cria a nova história. “Teu nome é glorificado, quando a justiça é nossa medida”. Justiça feita não através de meras intenções, mas nas relações que se estabelecem em sociedade, fazendo de nós irmãos e irmãs de caminhada na procura do Reino.
O Reino de Deus que é para todos e todas. Entretanto, alguns de nós chegarão primeiro nele. Neste sentido, Jesus foi categórico: “Há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (Lc 13,30). Ainda bem que os destinatários primeiros do Reino são os pequenos, pobres e marginalizados. Segundo a lógica de Jesus, estes serão os primeiros a desfrutar das benesses do Reino. Não somente os últimos serão os primeiros, mas também os primeiros serão os derradeiros. Serve de advertência para todos que nos achamos os primeiros, só pelo fato de participar da vida sacramental em nossas comunidades, participando frequentemente e “comungando” assiduamente do Pão Eucarístico, sem nos contrapormos a uma sociedade sem justiça social, fazendo com que os últimos continuem sendo últimos, em todos os níveis. Assim, ao contrário de aderirmos ao projeto de Jesus, nos afastamos ainda mais dele, pois a nossa justiça é tosca e desprezível aos olhos do Messias. Como bem definiu o profeta Isaías (765 a.C. e 681 a.C.): “Serás libertado pelo direito e pela justiça. (Is 1,27) Frase esta que foi traduzida desta forma por Santo Dom Oscar Romero: “Em um país de injustiças, se a Igreja não é perseguida, é porque é conivente com a injustiça”. Não basta ser pela justiça, mas também combater a injustiça.
Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.