Genocídio premeditado

Quarta feira da 34ª semana do tempo comum. Uma manhã típica das manhãs primaveris. O astro rei deu as caras logo ainda muito cedo, mostrando que não estava para brincadeiras. Depois de vários dias chegando timidamente, ele resolveu anunciar o novo dia de forma brilhante. Acompanhei os seus primeiros acordes na beira do Araguaia que ficou emoldurado com o esplendor, dourando as águas do rio e nos presenteando com um belo alvorecer, digno de um cartão postal. Como não sentir a presença de Deus num cenário como este? Pura “teofania” de um Deus sempre presente em nossas vidas.

Se bem que o cenário cotidiano da vida não é dos melhores. Depois do show de horrores que costumeiramente vemos ao nosso redor, nossos governantes não se cansam de serem protagonistas de muitos outros deles. Desta vez Foi em relação aos povos indígenas Yanomami. Não contentes com o caos que se instalou em suas aldeias, com surtos de malária, fome e falta de acompanhamento médico, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, proibiu que a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, adentrasse o território Yanomami e prestasse a devida assistência aos indígenas. Abandonados pelo governo e sem atendimento médico adequado, o povo Yanomami enfrenta um verdadeiro holocausto na sua saúde, sem medicamentos e ainda tem que suportar o avanço do garimpo ilegal sobre o seu sagrado território imemorial.

Não se trata da presença de nenhuma Organização não Governamental – ONG, como temem os asseclas do poder central. É a nossa principal instituição nacional de pesquisa e desenvolvimento em ciências biológicas. A Fiocruz, que foi fundada pelo médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917). Ele que foi o pioneiro no estudo das moléstias tropicais e da medicina experimental no Brasil, fundou esta instituição em 1900. Portanto, são mais um século de serviços prestados à nossa população ao longo destes anos todos.

Mediante tal contexto, como não falar em genocídio dos povos indígenas no Brasil? Um genocídio premeditado, já que há a intenção clara de dizimar populações inteiras, seja pela ação ou mesmo pela omissão. Nunca os povos originários se viram tão ameaçados como no atual cenário da necropolítica brasileira. Não bastasse a desassistência por parte dos órgãos governamentais, ainda são ameaçados por garimpeiros, madeireiros, pecuaristas, a turma do agronegócio, que seguem grilando as terras ocupadas pelos povos indígenas, com a conivência do Estado. Os indígenas não sabem mais a quem recorrer diante deste quadro funesto.

A palavra “genocídio” vem do grego “genos”, que quer dizer etnia, raça; sendo complementada também por outra palavra latina “cide” que significa “matar”. Ela é utilizada para fazer referência ao ato de extermínio sistemático de um grupo étnico ou a todo ato deliberado que tenha por objetivo o extermínio de um aspecto cultural fundamental de um determinado povo. Na verdade, a palavra genocídio foi utilizada pela primeira vez no ano de 1944 pelo jurista polonês Raphael Lemkin (1900-1959), contribuindo enormemente para denunciar os crimes nazistas cometidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1845), configurando o genocídio como um crime contra toda a humanidade.

O povo Yanomami está morrendo. Suas crianças estão perdendo a vida. Muitas delas perderam a luta contra a malária e também a Covid-19, levada pelos mais de 20 mil garimpeiros que exploram ilegalmente as suas terras. A presença da Fiocruz nesta área indígena, seria de fundamental importância, levando um pouco de alento e esperança às lideranças indígenas daquela região, que vêem seus filhos morrerem à míngua, sem o devido atendimento à saúde. Vários anciãos também tombaram nesta luta, queimando assim, verdadeiras bibliotecas de saberes tradicionais ancestrais. Se isto não é um genocídio, então precisamos mudar o significado desta palavra, adaptando-o ao contexto do “jeitinho brasileiro”.

É preciso muita garra e muita luta para fazer valer os nossos direitos. Somos filhos da esperança que nasceu da Cruz por onde passou o Ressuscitado. A teimosia e a resistência perseverante dos seguidores d’Ele, é que faz nascer a esperança em nosso coração. Ser cristão é ser da luta e da missão de dar continuidade a proposta messiânica de Jesus pelo testemunho (Lc 21,12-19). Como Ele, também seremos perseguidos por causa de seu nome. Aderir e abraçar o Projeto de Jesus significa arriscar a própria vida, pelas vidas e pelas causas do Reino. É não aceitar o genocídio premeditado contra os pequenos e indefesos. É esperançar na esperança do Reino, acreditando naquilo que disse Jesus hoje no final do evangelho Lucano: “É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida”! (Lc 21,19) Vidas pela vida! Vidas pelo Reino! Como bem cantou o nosso menestrel Zé Vicente: “Lutar e crer, vencer a dor, louvar ao criador! Justiça e paz hão de reinar e viva o amor!”


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.