A Palavra se faz Vida na vida

31 de dezembro de 2021. Sétimo dia da Oitava do Natal. A virada é bem ali na frente. Já podemos sentir os ventos que sopram vindos de lá. O túnel do tempo se apresentando e tornando realidade na história humana, permitindo-nos fazer a ultrapassagem desta última barreira. Agradecidos, louvamos o Deus Criador que nos permitiu estar vivos, enquanto muitos irmãos e irmãs não tiveram a mesma “sorte”, antecipando precocemente à sua páscoa do encontro com Ele. Não consigo conceber a ideia de que não estejam acolhidos no colo “ternural” de Deus.

As chuvas seguem acontecendo em profusão nas mais variadas regiões do Brasil. Também aqui, pelo Araguaia, elas caem abundantemente. Já estamos acostumados com elas, uma vez que este é o período da presença delas por aqui. O Araguaia agradecido, recebe a cada dia mais água. As escâncaras de suas fissuras, ocasionadas pela seca, já não são mais vistas, engolidas pelo volume das águas da chuva. Foi o ano em que mais mostrou as suas vísceras, dada a ação criminosa de alguns dos nossos. Segundo as estimativas, a continuar assim, é provável que deixe de existir totalmente num prazo de 40 anos. Apaixonado que sou, não gostaria de pagar para ver.

Ano novo vida nova! Em circunstancias como estas, as pessoas aproveitam para enviar as mensagens de felicitações pelo ano que se inicia. Quase sempre, mensagens prontas que encontram por aí e as repassam. Uma avalanche delas toma conta das redes sociais. Numa repetição infinda da mesma mensagem, que circula à exaustão. Confesso que não gosto delas! Talvez por ser aquilo que as pessoas não conseguiram ser ao longo de todo o ano e tentam minimizar este “não ser”, através de uma mensagem positiva daquilo que não foram.

Ano novo nova vida! Nova chance de situar-nos no contexto da existência e ser quem somos, sob uma nova perspectiva de encarar os desafios da vida. Contextualizar a vida numa interação maior, de saber que estamos todos e todas interligados/as. Assim, o que acontece a um dos nossos, acontece também a todos os demais. Trazer em nós a concepção do “Bem Viver” dos povos originários, que conseguem manter uma sintonia fina com a natureza e tudo o que ela representa, numa atitude simbiótica com todos os seres que habitam a Pachamama.

Ano novo, novo existir! O sopro da vida está em nós! Foi Ele que nos engravidou de existência plena de utopia, para caminharmos rumo aos sonhos e realizações possíveis e alcançáveis. Assim, vamos traçando o roteiro da nossa existência neste mundo, obedecendo ao princípio do “livre arbítrio” do meu “ser enquanto ser”. Talvez aqui seja a oportunidade de trazer presente à nossa existência a filosofia africana Ubuntu: “meu existir está conectado ao existir do outro”. Ou seja, retomar em nós a essência do Ser consciente de que faz parte de um todo maior, que envolve outros seres, tão importantes quanto cada um de nós. Sob está perspectiva, jamais poderemos Ser sozinhos num mundinho particular que possamos construir ao nosso redor.

Ano novo postura renovada! Ano em que podemos conjugar na ordem do dia das nossas ações o respeito, a ternura, a solidariedade e a empatia. Colocar-nos no lugar do outro e de saber que ambos estamos conectados. Atitude que teve o monge e escritor trapista francês Thomas Merton (1915-1968), que em 1955, nos deu de presente a sua bela obra “Homem algum é uma ilha”. Ali, o poeta já nos alertava de que não vivemos isoladamente e muito menos sem ter uma referência de um Ser Superior, para nos conectar com os demais. Deus é esta interlocução transcendental que nos coloca num plano de irmandade.

Deus que é a Palavra! E a Palavra se fez carne e habitou entre nós”. (Jo 1,14) E a Palavra se faz vida nas nossas vidas. O Verbo se fazendo carne na nossa carne. Gente da nossa gente! É isto que a liturgia de hoje nos faz refletir. No último dia do ano, voltamos ao começo: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus”. (Jo 1, 1). Deus que se volta para os pobres e fazendo um com estes pobres. De ontem e de hoje. Um discurso exegético-teológico da comunidade Joanina, traduzindo o Mistério da Encarnação de Deus na pessoa de Jesus que adentra a história humana, como um Deus pleno de humanidade. O discípulo amado transcrevendo o Mistério através de uma linguagem mais acessível, mostrando-nos o rosto do Filho de Deus que já existia em Deus antes mesmo da criação. O Verbo que é a Palavra que estava no Pai. O Filho que é a Imagem do Pai. O Pai que se vê totalmente no Filho, num eterno diálogo de mútua e permanente comunicação. Pai e Filho se fazendo um na nossa história humana, para que também nós, seus filhos e filhas, possamos ser o que somos e quem somos, uns com os outros na realidade nova do ano que vem vindo ao nosso encontro. Feliz 2022 e que tenhamos muitos rabiscos como estes, para importunar vocês que ainda perdem o precioso tempo para ler!


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.