A fome tem pressa

“Domingou” mais uma vez! Segundo a liturgia diária, vivenciamos hoje o 24º domingo do tempo comum. Mesmo em tempos de pandemia, celebramos em nossas comunidades o “Dia do Senhor”. Momento em que as comunidades se reencontram para celebrar e refletir a sua caminhada à luz da Palavra de Deus. Momento especial, pois, que os textos lidos, refletidos e rezados nos impulsionam para a caminhada de Igreja povo de Deus em marcha, fazendo acontecer a nossa história. Deus é conosco através de seu Filho que se fez um de nós.

Madruguei neste domingo, vendo os acordes de um novo dia, sendo trazido pelo irmão sol e a irmã luz. O frescor da manhã, em nada se parece, com o que virá depois que o astro rei exerce o seu domínio pleno entre nós. Rezei nesta manhã contemplando as peripécias dos quatis, saboreando as jacas de meu quintal. Como eles ficam nas galhas mais altas, se esbaldando, para desespero de minhas cadelas, que somente observam indignadas aquela condição desigual, delas não os colocarem para correr da demarcação de seu território. Elas não se conformam por eu nada fazer, para correr com aqueles “forasteiros invasores”.

Quis trazer presente comigo em minhas humildes preces nesta manhã, uma das últimas produções da parceria Pedro Casaldáliga/Cirineu Kuhn: “Ruah, Vento de Deus”. Uma obra póstuma de rara beleza, que nos faz inevitavelmente rezar. “Tu que sopras onde queres, Vento de Deus gerando vida, Sopra-me, sopra-me, Sopra-me, Sopro fecundo…” Sopro de Deus que adentra as nossas entranhas, devassando nosso íntimo, nos colocando em sintonia com o Projeto de Deus revelado em Jesus de Nazaré. Apesar de nossas fragilidades, Deus nos empodera para que possamos assumir as rédeas de nossa história, fazendo acontecer entre nós o Reino.

Deus é mais! Costumamos repetir exaustivamente esta frase entre nós. Paulo na carta aos Romanos, vai mais além quando propõem: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rom 8,31). Deus, além de ser o nosso refúgio, é também a nossa melhor segurança, nosso porto seguro. Não há segredo algum quando afirmamos que a nossa comunhão com Deus se faz na pessoa do Filho que se faz presente em nossas vidas. Assim, com o amor de Deus, manifestado em seu Filho, nada mais temos a temer: nem dificuldades, nem perseguições, nem martírio, nem qualquer forma de dominação. Nada poderá desfazer o que Deus já realizou junto a seu povo. Nada poderá impedir o testemunho martirial dos cristãos. E nada poderá opor-se à plena realização do projeto de Deus entre nós.

Entretanto, vivemos numa sociedade controversa, contraditória e desigual. A concentração de renda nas mãos de uns poucos, faz de nós uma sociedade estratificada. Neste contexto, o que sobra na mesa de alguns poucos, falta na alimentação básica de centenas de milhares de pessoas. A fome sempre foi um problema grave no Brasil. Tal situação não se faz presente apenas em tempos de pandemia. Somente foi acirrada com a Covid-19. Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – Rede PENSSAN, “antes da pandemia, havia 57 milhões de pessoas vivendo em insegurança alimentar no país, sem acesso pleno e permanente a alimentos; em abril de 2021, 116,8 milhões de pessoas passaram a viver em insegurança alimentar, sendo que 43,3 milhões não tem acesso aos alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada) e 19 milhões passam fome (insegurança alimentar grave)…”

Como filhos e filhas de Deus, desejosos de seguir na mesma trilha de Jesus, se faz necessário que conheçamos estas informações para que possamos interferir no processo de mudança. A fome é cruel. Quem passa fome tem pressa. Não há cena mais desumana do que ver uma criança passando fome e sem perspectiva de quando vai ter algo para saciar a sua fome. Como aquela mãe solo, que não tinha o que dar para os seus três filhos menores, mandou que eles fossem para as ruas, pedir o que comer. Inadmissível convivermos com cenas como estas, ainda mais para um país que se transformou num dos maiores celeiros de produção de grãos para a exportação do mundo.

Produção para a exportação de “commodities”, uma expressão do “economês” moderno para dizer o Brasil se especializou em comercializar mercadorias (grãos) de grande valor comercial no estrangeiro. Exportamos alimentos para o mundo e não nos preocupamos com aqueles que vivem em solo brasileiro. Situação que vem acompanhada de uma mentira deslavada de que quem nos alimenta no Brasil é a turma do agronegócio. O que poucos de nós sabemos é que 70% dos alimentos consumidos no país, vêm da agricultura familiar. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “são pequenos agricultores que plantam para abastecer a família e vendem o que sobra da colheita tais como mandioca, feijão, arroz, milho, leite, batata.” A fome é degradante e clama aos céus. Diante dela, não há como não concordar com aquilo que disse Mahatma Gandhi: “Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome.”

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.