A humanização do humano

29 de dezembro. Quinto dia da oitava do Natal. Vivemos os últimos dias do ano. Oportunidade impar que nos é dada para a realização de um balanço geral em nossas vidas, nossas atitudes e compromissos frente à existência. Foi um ano difícil! Perdemos pessoas amigas, pais, filhos e parentes. Pessoas próximas e distantes. Algumas delas fazendo muita falta na vida de alguns dos nossos. O ano em que fomos testados no limite de nossas possibilidades. A pandemia deixou-nos uma ferida de difícil cicatrização. Somente Deus pode ser o nosso refúgio e proteção em horas tão amargas.

O ano novo se aproxima. Hora de renovar o compromisso pela vida. Vida em sua totalidade e não pela metade. A vida nossa e a de quem está ao nosso lado, sobretudo daqueles e daquelas que estão em situação de vulnerabilidade social. Fazer brotar de dentro de nós o nosso lado humano, humanizando as nossas relações pela ternura, compaixão e solidariedade. Nosso espelho maior é a figura de Jesus que foi tão humano, que somente Deus poderia ser tão humano assim. Deixar florescer em nossos corações a humanização do humano em nós.

Rezei nesta manhã na companhia do profeta dos pobres do Araguaia. O corpo de Pedro ali sepulto transmite uma sensação profunda da presença de Deus. É como se o imanente e o transcendente se dessem as mãos e se transfigurassem na humildade daquele homem de Deus, postado ali naquela simples sepultura. Um bispo que não era “Dom”, mas se fez dom na entrega total de si mesmo para os mais pobres, durante toda a sua vida eclesial de pastor, poeta, místico e profeta desta Igreja do Araguaia. Aproveitei para pedir a sua intercessão junto à “Testemunha Fiel”, por todos nós, no compromisso de continuar na resistência e teimosia da utopia crível do Evangelho, esperançando com Jesus por outro mundo possível. Saí dali com o coração cheio de esperançamento.

Pedro ainda sendo Pedro! Um homem de Deus que viveu intensamente aquilo que acreditou. Sua sensibilidade de poeta o fez ainda mais próximo de Deus, se fazendo um com os pobres desta terra. Sua mística martirial de uma Igreja peregrina com os pobres marcou a história do Araguaia. Por mais que as coisas fossem difíceis, Pedro sempre vinha com uma palavra de coragem e esperançamento, situando-nos na mesma perspectiva do Ressuscitado, reforçando em nós a firme ideia de que somos testemunhas com Ele. Tinha para si esta convicção, tanto que, em momento algum, o víamos perder noites de sono, por causa das inúmeras perseguições e ameaças, que sofrera em vida.

Somos filhos e filhas do Deus da vida! O nosso DNA está configurado com as digitais do próprio Deus que nos fez à sua imagem e semelhança (Gn 1,26-28). No poema da criação, Deus nos projeta no universo como criaturas suas, sendo que o ponto mais alto desta criação é a característica peculiar da humanidade. Perder esta humanidade é o mesmo que desconectar-nos com Deus, pois o selo original de Deus na criação está em nós. Desumanizar é perder a referência de Deus em nossa história de vida e satisfazer-nos com o nosso ego inflado e auto-suficiente. Nestas horas nos ajuda a pensar quilo que fora dito pelo filósofo e teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813 – 1855): “A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente”.

No dia de hoje, a liturgia nos coloca em sintonia com o menino Jesus que é apresentado no Templo, como prescrevia a Lei de Moises (Ex 13,2). Maria e José que vão ao Templo para consagrar o menino ao Senhor. Jesus que vai ao Templo. Como um casal pobre de Nazaré, Maria e José cumprem o ritual próprio de sua classe social (Lv 5,1-8). Este já é o prenúncio da missão que aquele menino traria em si. Tal contexto evangélico nos mostra que o Messias nasce num lugar pobre, e vem pobre, para os pobres. Este é também o desafio que nos é proposto, enquanto seguidores de Jesus de Nazaré. Desta forma, quando a Igreja faz a opção pelos pobres, ela está sendo fiel ao Evangelho e às mesmas causas de Jesus: “Eu não fui enviado, senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24).

Uma proposta litúrgica que renova a nossa esperança de dias melhores afinal podemos também repetir com o velho Simeão: “Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar teu servo partir em paz; porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel” (Lc 2,29-32). Que venha o ano novo com todos os seus desafios! Como o povo de Israel que esperava pela libertação, possamos também nós, imbuirmos do mesmo espírito de Jesus e trabalhar por construir uma sociedade humanizada, justa e fraterna, aberta para a novidade de Deus. Que o Deus humano se faça humanidade em nos!


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.