Iniciamos mais uma terça feira. Amanheci mais introspectivo hoje. Também o ambiente ajudou. Ainda bem cedo, era possível se ouvir o canto do Urutau. Uma destas aves resolveu chocar os seus filhotes na jaqueira do meu quintal. Urutau (Nyctibius griseus) é esta ave cheia de mistério, que para alguns é símbolo de azar. Também chamada de Mãe-da-lua, tem um cântico triste e agourento. Ave de hábitos noturnos que possui grande habilidade de se camuflar para fugir dos predadores e também alimentar-se.
Na minha oração desta manhã, não me detive nos textos da liturgia do dia, apesar da riqueza deles. Invoquei a presença de Pedro e meditei ouvindo uma de suas últimas canções, musicada pelo seu parceiro, o Verbita Cirineu Kuhn, como homenagem póstuma ao nosso poeta/profeta. Ruah é uma palavra feminina em hebraico que quer significar vento, espírito, alento, hálito divino, sopro de vida. Se atentarmos um pouco mais sobre esta palavra, vamos perceber que com este sopro, Deus deu vida ao primeiro ser humano feito à sua imagem e semelhança. O hálito feminino de Deus gerando a vida. Veio-me a mente uma das frases ditas por São Francisco de Assis: “SE algo rouba a paz do meu coração é porque roubou o lugar de Deus”.
“Tu que sopras onde queres, Vento de Deus gerando vida, Sopra-me, sopra-me, Sopra-me, Sopro fecundo, Sopra-me, sopra-me, Sopra-me, Sopro fecundo”. (Ruah, Vento de Deus) Um convite à oração. Pedro com o seu jeito poético de falar do sopro divino, entremeado pela sua mística contemplativa na ação. Somente ele poderia nos presentear com algo tão lindo, que Cirineu, numa sintonia perfeita, soube muito bem encontrar a melodia adequada, que nos coloca diretamente em clima de oração. Oração na ação, como ele frisava. Rezar a ação feminina de Deus gerando vidas.
Ainda seguimos no clima das festividades da Semana dos Povos Indígenas (“Povos Originários lutando pela Paz, Justiça e Bem Viver”). Um clamor que brota da garganta das lideranças indígenas e que sobe até Deus. O luto transformado em luta de quem não perdeu a esperança de encontrar a Terra sem Males, desejo incontido de seus ancestrais. “Uma terra onde corre leite e mel” (Dt 26,9), na compreensão de Deus. A PACHAMAMA que é a força suprema do feminino, que reúne em si os poderes maternos (Mama) e é a doadora dos alimentos e dos atributos do tempo e do universo (Pacha).
Falar dos Povos Indígenas é olhar para a história. Pena que a Igreja Católica prestou um serviço vexatório durante o período que durou o processo de colonização da América. Justamente ela que enxergou na colonização uma oportunidade de fazer novos fiéis e conquistar a influência sob novos territórios, Entremeada pelo baque da Reforma Protestante do inicio do século XVI, embarcando na “canoa furada” do colonizador, viu a possibilidade assim de buscar novos fieis. Contribuiu e foi conivente com o massacre de indígenas e negros, uma vez que a chibata e os maus tratos ocorridos durante o dia se transformavam na cruz que nas noites, domesticava a alma, numa tentativa de subjugação à condição de seres inferiores dominados.
Segundo a compreensão dos representantes da igreja que se fizeram presentes na embarcação do colonizador, os indígenas eram seres desprovidos de alma, por viverem de forma selvagem e promíscua, por deixarem à mostra a vergonha da sua nudez. Por esta razão, foram trazidos de suas aldeias e, nos aldeamentos, catequizados e posteriormente batizados, para que adquirisse cada qual a sua alma. Povos literalmente rivais, colocados lado a lado nestes aldeamentos, sem qualquer preocupação do que pudesse vir acontecer numa possibilidade de enfrentamento.
A Igreja sendo conivente com o massacre dos povos que por aqui habitavam. Uma historia que nos envergonha de saber que representantes de Jesus se prestaram a este tipo de serviço que não diz nada do Evangelho. Talvez por razoes óbvias como estas, que as lideranças indígenas do Peru, aproveitaram da visita do Papa João Paulo II, para entregarem a ele uma carta com os seguintes dizeres: “Nós índios dos Andes e da América, decidimos aproveitar a visita de João Paulo II para devolver-lhe sua Bíblia, porque em cinco séculos, ela não nos deu nem amor, nem, paz, nem justiça. Por favor, tome de novo sua Bíblia e devolva-a a nossos opressores, por que eles necessitam seus preceitos morais mais do que a nós”. (Boff, Leonardo, NOVA EVANGELIZAÇÃO: perspectiva dos oprimidos, Vozes, Petrópolis/RJ, pag. 15, 1990) Dizer o que? O papa teve que receber a Bíblia e calado foi embora.