Iniciei o meu dia de hoje rezando não os textos da liturgia do dia, mas uma das narrativas do evangelista Marcos (Mc 10, 15). Talvez por causa da cena que fiquei imaginando na noite anterior. Uma menina de 10 anos de idade, grávida, em companhia da sua avó, entrando no hospital, no porta malas de um carro. O detalhe: a menina abraçada a um ursinho de pelúcia. Tudo porque, pessoas acima do bem e do mal, contrárias ao aborto, manifestavam em frente ao hospital, impedindo que tanto a menina quanto o médico, entrassem para realizar ali o procedimento cirúrgico. Enquanto o médico distraia os manifestantes, o carro entrou no hospital.
Na narrativa de Marcos, Jesus nos diz claramente: “Aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança, jamais entrará nele.” (Mc 10,15) Como a uma criança, que sejamos confiantes, abandonados em Deus, puros, inocentes (não ingênuos), generosos, espontâneos, alegres. Ou seja, o Mestre nos assegura que devemos ser como crianças para compreender a dinâmica do REINO. É através da ótica contida na simplicidade e na pureza de uma criança que enxergaremos a proposta do reino querida por Deus. Portanto, segundo esta linha de raciocínio, é através dos pequenos, que veremos o REINO acontecer aqui e agora. E Deus tem pressa para que ele comece já e não numa dimensão para fora da história.
Fiquei imaginando o coraçãozinho trêmulo daquela criança, sendo ali ameaçada, por uma alcateia de lobos/as vorazes, “defensores intransigentes da vida”. Também fiquei pensando no que não deve ter passado na cabecinha daquele ser inocente, sendo comparada a uma cadela no cio. De saber que a “responsável pela família brasileira” afirmou que a criança não sofrera tanto, ao ser estuprada, porque o estuprador sabe como tatear o corpo que estava sendo ali estuprado. Não consigo conviver com estas coisas. Nestas horas bem que eu queria dizer com Silvio Brito: “Pare o Mundo que eu quero descer.”
No dia 13 de julho deste ano, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fez o seu trigésimo aniversário. Uma das grandes conquistas acontecida em 1990. Depois de muitos estudos, acerca da realidade vivida pelas crianças e adolescentes em nosso país, foi sancionada a lei de criação do ECA. Apesar de ser uma grande conquista, assegurando direitos fundamentais aos nossos jovens, este estatuto levou muitas bordoadas, por aqueles insanos, que insistem em dizer, que a criança tem que trabalhar para ajudar a sua família. Como se não fosse um direito a criança ser criança e viver esta fase tão importante da sua vida, sem ter que arcar com a responsabilidade de trabalhar para ajudar a sustentar a sua família.
A criança tem que ser tão somente criança e viver como criança e nada mais! Somente numa sociedade desigual, cuja economia é de morte, é capaz de ter um pensamento absurdo como este. Não fosse esta alta concentração de renda, nas mãos de uma elite podre e atrasada, as famílias teriam plenas condições de viver com a dignidade de filhos e filhas de Deus, sem ter que passar pela experiência de fazer os seus pequenos trabalharem para ajudar no seu sustento.
Quem critica o ECA, como um estatuto que privilegia vagabundos, reproduz o mesmo discurso desta elite que nos domina há séculos. Muitos que fazem críticas contumazes ao Eca, nem sequer leram uma pagina deste importante documento. Infelizmente alguns de nossa “Santa Madre Igreja”, também engrossam estas críticas. Já vi bispos falarem terrivelmente mal do estatuto. Estes últimos não têm cheiro de ovelhas, mesmo porque esta linguagem já não cabe para a realidade em que vivemos. Suas eminências, não tem cheiro do povo mesmo, uma vez que, encastelados nas suas mansões, passam longe da realidade vivida pelos Zé ninguém da vida. Que vergonha!
Ainda bem que faço parte de uma igreja que sabe ser diferente e vive encarnada e incardinada na pobreza. Com os pobres e contra a pobreza. Olhar e viver o mundo a partir daqui, faz toda a diferença. Neste sentido, Pedro soube muito bem nos posicionar na defesa dos sem vez e sem vós. Quando vemos um presidente de uma instituição tão importante como a CNBB, emitir uma nota e incriminar ainda mais a criança estuprada e grávida, temos que pensar como Jesus e dizer: “Perdoa-lhes Pai, eles não sabem o que fazem.” (Lc 23, 34) Roubaram a infância da menina.