A mística de Corpus Christi

Quinta feira da Nona Semana do Tempo Comum. Solenidade de Corpus Christi. Nossa Igreja dá uma parada no Tempo Comum do Ano Litúrgico, para celebrar este acontecimento tão importante de nossa caminhada eclesial. Corpus Christi que, segundo a origem latina, quer dizer Corpo e Sangue de Cristo. Uma festa “tradicional” que foi instituída pelo decreto do papa Urbano IV, no ano de 1264, no qual ele afirmava que a data deveria ser celebrada sessenta dias após a Páscoa cristã, trazendo viva a memória da instituição da Eucaristia por Jesus na Quinta Feira Santa.

Um Corpus Christi com sabor amargo de fel para a história republicana brasileira. No dia de ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu mais uma vez o julgamento do Marco Temporal, depois do ministro André Mendonça pedir vistas (mais tempo de análise). É a segunda vez que este julgamento é adiado desde a sua discussão, iniciada em 2021. Por enquanto, o placar está em 2 a 1 contra o Marco Temporal. O ministro relator, Edson Fachin votou contra a tese do Marco Temporal, assim como Alexandre de Moraes. Nunes Marques, como já era esperado, votou a favor.

O tese do Marco Temporal é uma grande farsa que as forças do latifúndio querem fazer descer goela abaixo dos Povos Originários desta nação. Se aprovada esta aberração jurídica, joga por terra todo o processo de Demarcação das Terras Indígenas, que somam um total de 13,8% do território nacional, favorecendo amplamente a grilagem de terras, o desmatamento, a retirada ilegal de madeira, a contaminação dos mananciais. Não basta ser contra o Marco Temporal, precisamos ser favoráveis às causas indígenas, como bem disse Dom Evaristo Spengler, Bispo de Roraima, na concentração da manifestação contra o marco temporal, em Boa Vista: “Como Igreja, é necessário manter uma opção preferencial pelos povos indígenas”.

Alguém já disse acertadamente: “No Brasil, todos temos sangue indígena. Uns nas mãos, outros nas veias e outros na alma.” Alguns de nossos políticos estão com suas mãos ensanguentadas. A causa indígena é de todos nós até porque, se tem alguém que ainda preserva a terra, a floresta, a natureza, os mananciais, são os povos indígenas. Aqui na nossa região amazônica se sabe claramente o que é terra indígena e o que não é. O campo visual já denuncia as grandes áreas desmatadas onde estão presentes: o “agro-veneno”, os pecuaristas e as terras improdutivas, que deixam de cumprir a função social da terra, conforme está previsto em nossa Constituição Federal de 1988.

Compreender o sangue indígena derramado na luta pela terra é entrar em sintonia com o sangue de Jesus derramado na cruz do calvário. Festa do Corpo e Sangue de Jesus. Para este Ano Litúrgico A, a liturgia nos reservou o Evangelho de São João (Jo 6, 51-58), fazendo referência ao ensinamento de Jesus aos seus discípulos e discípulas, que ainda estavam presos a um tipo de piedade baseada na interpretação da lei judaica do templo. É preciso ir muito mais além se quisermos entender o que significa, de fato, celebrar esta solenidade do Corpo e Sangue do Senhor.

O memorial da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus tem o seu momento forte quando na Quinta Feira Santa, Jesus reúne os seus seguidores e seguidoras para com eles e com elas, celebrar a Última Ceia, instituindo a Eucaristia. Naquele momento, Ele diz a todos os presentes: “depois de dar graças, o partiu e disse, Isto é o meu corpo que é dado para vocês; façam isto em memória de mim”. (1Cor 11,24) Fez a mesma coisa com o seu sangue, dando-nos a oportunidade de celebrar nos dias atuais a Eucaristia como Pão partilhado. Vida doada.

Celebrar Corpus Christi é celebrar o Pão em todas as mesas. Mais do que seguir preceito devocionista, ou enfeitar as ruas para a passagem da procissão, é saber que comungar do Corpo e Sangue de Jesus é saber partilhar o pão/alimento e o pão da vida com todos no serviço/entrega pelas mesmas causas de Jesus. É um compromisso de muita responsabilidade que assumimos ao participar no altar da partilhar do pão sagrado que é Jesus, e sermos “jesuanos” e “crísticos” como Jesus. Neste sentido, o Concílio Vaticano II (1962-1965) nos ajuda a entender, quando institui que a presença do Cristo na eucaristia é para ser comida por todos como sinal profético de partilha. A comunhão no altar deve suscitar em nós o pão em todas as mesas afinal, “Eu sou o pão vivo descido do céu; quem deste pão come, sempre há de viver!” (Jo 6,51) A mística de Corpus Christi é a luta pela libertação de todas as formas de opressão e o pão que mata a fome de todos os irmãos.


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.