A pobreza e a escatologia

Quinta feira da Segunda Semana da Quaresma. Tempo de recolher, mas também tempo de lançar-nos no esperançamento do fazer acontecer a história. Tempo de pensar/refletir e tempo de agir. Tempo de rezar e tempo de fazer. Tempo de ser uma Igreja “Sinodal em Saída”, superando uma “evangelização que continua sendo colonizadora”, como o nosso bispo Pedro nos dizia. A quaresma só tem sentido se nos debruçarmos sobre a nossa prática de fé, adequando à prática libertadora de Jesus de Nazaré. Como nos lembra o Evangelho, somos fermento, semente, sal e luz.

Apesar do tempo programando chuva para esta manhã, rezei na companhia do profeta dos empobrecidos do Araguaia. Uma busca resistente de sintonia com a Igreja dos pobres que Pedro soube muito bem viver e representar nestas terras do “Vale dos Esquecidos”. Opção feita na carne por um modelo eclesial de uma Igreja pobre para os pobres e descartados, como Medellín nos orientou há 55 anos. Poucos na Igreja sabem, mas os “os documentos de Medellín foram um marco no caminho pós-conciliar, porque foram os primeiros a assumir o novo clima do Concílio Vaticano II. E tudo isso levou sua influência para além de nossas fronteiras”, que Pedro incorporou à nossa Igreja da Prelazia de São Félix do Araguaia. Um legado a ser lembrado e vivido.

Oportunidade para trazer presente entre nós a Campanha da Fraternidade deste ano: “Fraternidade e Fome” – “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14.16) Os bispos brasileiros, reunidos na CNBB, não poderiam ter escolhido temática mais atual e gritante que esta. São mais de 33 milhões de pessoas passando fome entre nós, sem falar das 125 milhões de pessoas que estão inclusas na relação daqueles que vivem em condições de insegurança alimentar. Lembrando que a insegurança alimentar “é um fenômeno que ocorre quando um indivíduo não possui acesso físico, econômico e social a alimentos de forma a satisfazer as suas necessidades”, conforme a definição da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

A fome é estrutural no nosso país. Ela não acontece por um mero acaso de um acidente geográfico ou endêmico/epidêmico. Ela acontece como consequência de uma estrutura de sociedade que prima pela concentração da riqueza e fundiária, fruto da ganância daqueles que se sentem no direito de acumular, não se importando com a miséria da maioria da população. Também não é por falta de alimentos que ela existe, principalmente se levarmos em consideração que a safra agrícola de grãos deste ano de 2023 deve ser recorde, totalizando 302 milhões de toneladas. Significando 38,8 milhões de toneladas a mais que o desempenho do ano passado (2022), alcançando uma alta de 14,7%, segundo os dados do Levantamento Sistemático da Produção Agrícola de janeiro, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Importante lidarmos com estes dados para desmascarar a narrativa dominante de que o Brasil “mata a fome do mundo”. Uma contradição latente: como pode sanar a fome do mundo se a sua própria população está morrendo de fome? Este contexto também nos ajuda a entender a proposta litúrgica para o dia de hoje. Nela Jesus está contando a conhecida parábola do rico e o pobre lázaro. Jesus fazendo uma dura crítica à sociedade classista de sua época, onde o rico abastado vive na abundância e no luxo, enquanto o pobre morre na miséria. Entender a pobreza de Lázaro é relacioná-la à estrutura de sociedade que é a causadora desta triste realidade e não fazer uma hermenêutica (interpretação) ligando à escatologia (fim dos tempos) no pós-morte, justificando que na vida eterna, o pobre vai ter um lugar junto de Deus.

Antes de uma concepção escatológica deturpada do “Salva a tua alma”, está a vida de corpos maltratados, explorados, dilacerados pela pobreza e pela fome. Jesus na sua pedagogia libertadora quer nos dizer que, mais do que explicação da vida no além, a parábola é exigência de profunda transformação social, para criar uma sociedade onde haja partilha de bens entre todos. Para isto é necessário uma urgente conversão, abrindo mentes e coração para a palavra de Deus e, consequentemente, para a vida dos pobres. Converter para mudar a nós e as estruturas. A pobreza e, sobretudo, a fome são males que precisam ser extirpados. Faz sentido uma das frases ditas pela Madre Teresa de Calcutá: “Quando um pobre morre de fome, não é porque Deus não cuidou dele. É porque nem você nem eu quisemos lhe dar o que ele precisava.”


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.