A raiz do discipulado

Quinta feira da Terceira Semana do Tempo Comum. Seguimos sonhando os nossos sonhos. Sou um sonhador inveterado. O sonho está presente numa das esquinas do meu coração. Com ele vai também o meu esperançamento. Meu sonho de cada dia está sempre sendo conjugado na perspectiva das utopias do Reino. Sonhando e esperançando. Como nosso bispo Pedro sempre nos dizia que a esperança é um ato de rebeldia, sigo teimosamente acreditando nos meus sonhos e fazendo acontecer resistentemente a esperança que quero ver no outro mundo que somos chamados a construir. De expectativa em expectativa. De esperança em esperança teimosa.

A semana segue repercutindo a tragédia que se abateu sobre os Povos Yanomami. É impossível existir um coração dentre nós que não esteja abalado diante das imagens chocantes que adentram as nossas residências. Uma crônica da morte anunciada que já havíamos denunciado nestes quatro anos de des-governo, que felizmente nos deixou. O genocídio está presente para os povos indígenas tão claro como o amanhecer de cada dia. Tudo orquestrado nestes quatro anos, para dizimar populações inteiras, abrindo caminho assim para o garimpo ilegal, o desmatamento criminoso, a invasão dos territórios, devastando a floresta, levando doenças e contaminando as nascentes dos rios.

A vida dos povos indígenas pede socorro. As comunidades estão seriamente ameaçadas com o “passar da boiada”, como fora anunciado literalmente. Crianças, jovens e idosos sob o fio da navalha das ameaças rotineiras de morte. Lideranças sendo brutalmente assassinadas a mando dos poderosos senhores do capital. Nós daqui, sempre dissemos que era um genocídio acompanhado do etnocídio e ecocídio. A morte rondando os territórios sagrados imemoriais destes povos, das 305 etnias estimadas, falando em torno de 274 línguas maternas diferenciadas. No caso Yanomami, triste saber que apenas uma ONG evangélica tenha recebido cerca de 872 milhões, segundo ela, para tratar da saúde destes povos de Roraima.

Genocídio foi um termo cunhado na década de 1940 para tratar dos crimes contra a humanidade. No nosso caso, um crime cometido contra os Povos Originários desta terra. A indignação precisa ganhar espaço em nossas mentes e coração. Impossível conviver com algo parecido e ficarmos indiferentes frente a esta tragédia anunciada aos quatro ventos. Os culpados precisam ser punidos, sem esta conversa de anistia. Vidas humanas foram ceifadas. Sonhos e projetos foram interrompidos. Bastava tão somente que fosse cumprido aquilo que está prescrito na Constituição Federal de 1988: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. (Art. 231) Muito embora que a história dos povos indígenas do Brasil não começa em 1500, nem em 1988.

Como parte integrante do discipulado de Jesus, somos desafiados a agir tendo em nós os mesmos sentimentos d’Ele. A raiz do discipulado de Jesus está fincada na mesma origem que viu nascer o salvador: olhar para o mundo a partir da realidade da periferia. Um olhar minucioso a partir dos mais pobres. É o que fica explícito no texto que a liturgia desta quinta feira nos reserva. Jesus escolhendo e chamando aqueles e aquelas que farão parte do seu discipulado: “o Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir”. (Lc 10,1) Escolhidos e chamados a ser representantes d’Ele, dando continuidade às ações de libertação, conforme estava previsto em outra citação do evangelista São Lucas: “O Espírito do Senhor repousa sobre mim e enviou-me a anunciar aos pobres o Evangelho. (Lc 4,18) Levar a vida onde ela precisa ser vivida.

Este é o estigma da “Igreja do Caminho”, fundada nos primórdios do cristianismo. Uma Igreja servidora das causas de Jesus na instauração do Reino, samaritana e profética. Servir aos mais necessitados. Trazendo dentro de si o espírito de acolhida de quem se abre em misericórdia e compaixão; anunciadora da Boa Nova do Reino, denunciando com profetismo as estruturas de morte, presentes entre nós. Pena que alguns de dentro da nossa Igreja ainda não se alinharam à proposta de Jesus, se comportando apenas como meros “funcionários do sagrado”, numa rotina interminável de adminsitração dos sacramentos. Talvez pensando nisso é que Jesus tenha nos advertido: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos”. (Lc 10.2) Oxalá, que sejamos discípulos e discípulas raiz de Jesus, levando a Boa Nova do Reino onde ela precisa chegar. Ir aonde Ele próprio devia ir.


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.