Terça feira da segunda semana da quaresma. Já estamos a treze dias de caminhada neste tempo quaresmal. Mais do que um período litúrgico, a quaresma nos oportuniza um momento de transformação e mudanças em nossas vidas. Correção de rota. É uma olhar para dentro de nós mesmos, como forma de manter uma sintonia maior com o Evangelho, adequando a nossa vivência de fé cristã, na mesma lógica de Jesus, convergindo as nossas ações na procura do Reino. Reino de paz e justiça, onde a vida seja contemplada em toda a sua plenitude, pois é assim que Deus nos projetou neste mundo.
O dia de ontem foi um dia especial para a caminhada da Igreja latino-americana e caribenha. Há 58 anos (14/03/1964), era ordenado presbítero, o nosso grande historiador, padre José Oscar Beozzo. Parafraseando Eduardo Galeano, Beozzo é aquele sacerdote que vive sob as veias abertas do Concilio Vaticano II (1962-1965), onde teve uma participação decisiva na confecção deste grande documento para o caminhar da história da Igreja à luz dos tempos modernos. Historiador lúcido, teólogo, pastoralista, educador popular, coordena há vários anos o Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEP), cuidando da formação de muitas lideranças das comunidades e do movimento popular.
“Beozzo é um dos pilares da Igreja de Jesus de Nazaré para os tempos de hoje”, disse-me nosso bispo Pedro, numa das vezes que fui dizer a ele que estava indo participar do Curso de Verão em São Paulo. Curso este que participo desde o seu primeiro ano, e que mudou significativamente a minha trajetória de vida, fazendo de mim um eterno agente de pastoral na Igreja da Prelazia de São Félix do Araguaia. Quando Beozzo esteve doente, Pedro mandou através de mim o seguinte recado: “fala para o Beozzo que ele não pode morrer agora não. O Curso de Verão precisa entrar ainda em muitas outras vidas, principalmente dos padres mais jovens, para ver se assim eles encontram o caminho da Igreja verdadeira de Jesus de Nazaré”. Parabéns padre Beozzo pelos seus 58 anos de fidelidade no sacerdócio!
Vivemos o tempo pós-conciliar. Entretanto, apesar de toda a significância deste documento para a caminhada da Igreja no mundo, o dogmatismo religioso tem se esforçado para rasgar as determinações do Concílio Vaticano II. O tradicionalismo imperando como dogma maior, como doutrina ou sistema teológico implantado como único e verdadeiro, pela Igreja dos panos rendados e fartos, dos incensos poluentes a perder de vista. Bem profetizou Isaías no século VIII a. C.: “Detesto vossos cultos vosso incenso me causa nojo” (Is 1,11-14). Celebrações suntuosas, de muitas vestes e adornos, recheadas de louvores mil, sem a preocupação de buscar o direito e a justiça para os fracos e desprotegidos socialmente. Contra estes, assim disse Jesus: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mt 15,8).
O texto do evangelho de Mateus proposto pela liturgia para o dia de hoje é categórico. Mais uma vez Jesus se defronta com os fariseus. No tempo de Jesus, este era um grupo bastante numeroso e fazia uma oposição acirrada ao Galileu. Segundo o historiador judaico-romano Flávio Josefo, os fariseus constituíam um grupo de aproximadamente 6 mil homens, que viviam as voltas do Templo. Falavam, mas não faziam aquilo que suas bocas pronunciavam. Suas ações eram desconexas daquilo que falavam, ao ponto de Jesus alertar os seus discípulos: “Por isso, deveis fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imiteis suas ações! Pois eles falam e não praticam”. (Mt 23,3) Ou seja, Jesus faz uma crítica contumaz a estrutura religiosa de seu tempo, uma vez que os líderes religiosos e a classe dominante, transformaram o saber em poder, agindo hipocritamente e oprimindo ainda mais o povo. Se atentarmos bem, em muitas de nossas igrejas hoje, vemos acontecer exatamente isso, sobretudo nas igrejas midiáticas que, além de não levar a verdadeira mensagem libertadora de Jesus, prestam um grande desserviço à alienação de seus telespectadores.
Quaresma é tempo de mudança de rota. Comecemos por nós mesmos. Sejamos nós a mudança que queremos ver acontecer no mundo. Se não mudamos o mundo, pelo menos podemos mudar a nós mesmos. Pessoas mudadas, muda o mundo. Na nova comunidade proposta por Jesus todos seremos irmãos e irmãs, voltados para o serviço mútuo e reunidos em torno de Deus que é Pai, e de Jesus, que é o único líder e que veio para servir. Viver para servir! Servir para cumprir os desígnios de Deus em nós. O sentido verdadeiro da vida consiste em fazer da vida uma doação permanente às causas dos pequenos, assim como fez nosso Mestre e Senhor: “O maior dentre vós deve ser aquele que vos serve”. (Mt 23,11)
Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.