Sexta feira Santa. Sexta feira da Paixão. Talvez este seja o dia mais conhecido da história do cristianismo. Muitos cristãos veneram este dia como o mais importante de suas vidas. Dão mais valor a ele que o Domingo de Páscoa, que é o ápice da presença do Verbo no meio de nós. Maior ênfase é dada sobre o dia de hoje, quando o clima de velório toma conta de boa parte dos cristãos. Uma inversão de valores substanciais da vivência cristã entre nós. Pessoas que se comovem diante de Jesus crucificado e morto, sem se lembrar que o bom mesmo está na páscoa que esta logo mais a frente.
Nem precisaríamos criar um clima de velório para evidenciarmos a morte de Jesus, numa cruz, uma vez que o contexto que ora estamos vivenciando já diz muito. Se antes ficávamos assustados com as 600 mortes entre nós, as 3.769 vidas perdidas nas últimas 24 horas não nos assustam mais. Naturalizamos a morte como algo normal em meio à pandemia. Contabilizamos em números as vidas ceifadas. Um total de 325.284 de pessoas que já não estão mais entre nós. Tiveram a sua páscoa antecipada, fazendo do Brasil o segundo país do mundo mais atingido pela pandemia, superado apenas pelos Estados Unidos, que somam 30,5 milhões de casos.
Estamos a caminho daquilo que denominamos de “Tríduo Pascal”: Paixão-Morte-Ressurreição do Senhor. Período este que vai da tarde da quinta-feira Santa até a manhã do Domingo de Páscoa, quando, então, o Filho de Deus vence a morte e vivo permanece entre os seus. A morte que já não tem a última palavra como pensavam aqueles que tramaram a morte de Jesus. A vida triunfou! Ele está vivo! Jesus vive!
A cerimônia de hoje traz para nós o ponto fulcral da experiência cristã. A narrativa da paixão e morte de Jesus é o cerne do “querigma” cristão. Ou seja, este é o ponto fundamental, o mais importante e essencial: Jesus é o Filho de Deus enviado, o Messias que abraça livremente o Projeto de Deus e, ao se fazer presença viva na história humana, é rejeitado, condenado e morto, mas ressuscitou, instaurando na história da humanidade, o Reino de Deus que se faz presente, com o verbo no meio de nós.
Apesar de ser uma celebração cansativa, nela vivenciamos a memória viva do maior mistério do amor de Deus, que é o sacrifício de Jesus que ama até as últimas consequências. Este sinal do amor de Deus por nós é de uma espiritualidade profunda. Ao celebrar contemplando o crucificado, trazemos presente a lembrança de tantos crucificados da história. A morte de Jesus nos faz olhar também para a morte de nossos irmãos e irmãs que estão perdendo as suas vidas diuturnamente. Só há sentido em celebrar a morte do Filho de Deus se olharmos para a morte de tantos inocentes que perdem as suas vidas entre nós, sobretudo nestes tempos de pandemia.
Ainda recordando a quinta feira Santa um detalhe chama a nossa atenção. O cerimonial da quinta feira santa é bastante significativo para todos os cristãos. Ali vemos Jesus fazendo um gesto muito significativo. Ao lavar os pés de seus discípulos, ele nos dá um exemplo claro de qual deve ser a nossa atitude de cristãos na experiência de fé cotidiana: devemos ser aqueles e aquelas que se colocam a serviço das demais pessoas. E aqui está o detalhe do qual me refiro. Ao termino da cena, Jesus se senta e mantém sobre os ombros a mesma toalha com a qual enxugou os pés de seus discípulos.
Esta toalha passou a ser um dos principais símbolos da vocação sacerdotal. Ela confere um status ao presbítero, uma vez que somente ele a pode usar. Trata-se de um objeto de uso litúrgico, vinculado aos paramentos para a celebração da eucaristia. É também considerado um símbolo de poder, já que o seu uso é reservado especialmente para aqueles que receberam o sacramento da ordem. No caso do presbítero, a estola confere múnus, que é o poder sacerdotal de Jesus que o ministro ordenado recebe e procura exercê-lo em nome de Jesus Cristo na Igreja.
Fazendo uma alusão a talha de Jesus na cerimônia do lava-pés, algumas correntes dentro da Igreja católica, atribuem ai o surgimento da referida estola que o padre usa nas celebrações. Ou seja, a estola nada mais é do que o símbolo da mesma toalha usada por Jesus para enxugar os pés dos seus. Assim, antes de ser um objeto que confere poder clerical, ela é a toalha que o padre deveria usar para enxugar e curar as feridas dos caídos, dos pobres que estão a beira do caminho. Muito embora não seja isso que vemos acontecer com alguns presbíteros. Suas estolas são mais do que símbolo de poder. É o símbolo da ostentação, da riqueza de vestes cada vez mais sofisticadas e que estão muito distantes da vida dos pobres, prefigurando em si os compromissos e as opções sociais destes tais presbíteros. Quem sabe não seja hora de repensar as nossas vestes clericais, aproximando-as da realidade do povo simples, mais condizentes também com as vestimentas do próprio Jesus de Nazaré.